De médico e louco, todos temos um pouco …

Dizem os médicos que tenho uma tendinite no ombro e ela de vez em quando faz questão de me lembrar que continua ali para me chatear e fazer gemer. E eu gemo, faço fisioterapia ou tomo um medicamento prescrito pelo médico para a acalmar. Há alguns dias, quando estava num desses momentos de crise a massajar o ombro na tentativa de aliviar a dor, alguém do lado disse-me: “Eu também andava com uma dor no braço e o médico deu-me uns comprimidos que me fizeram desaparecer a dor num instante. Porque é que não tomas já um”?

É vulgar termos ao lado um familiar, amigo ou colega de trabalho que, para um problema de saúde, disponibiliza um medicamento na hora ou, no mínimo, prescreve o que é que devemos tomar porque foi o medicamento que resultou com ele em determinada situação, que até pode não ser igual à nossa. E no caso de recusarmos o conselho ou medicamento, ainda que de forma diplomática, pode ficar amuado, sentindo a rejeição como uma afronta, como se os seus “serviços” não sejam valorizados, quando a intenção era só de ajudar.

Desde sempre houve esse espírito de entreajuda. Só que, se noutro tempo se limitava a recomendar uma “mezinha”, um chá de cidreira, camomila, limonete ou tília, “talhar o pulso” ou outra parte do corpo, “endireitar a espinhela” e até uma ida ao “bruxo”, nos dias de hoje o desenvolvimento da medicina, muito em particular da farmacologia, para além da vasta informação obtida no “Dr. Google” (onde se sabe tudo de tudo), é frequente encontrar em alguém que nos é próximo um aconselhamento terapêutico ou até assistencial na hora, mesmo que não profissional, com medicação que diz “apropriada” para o nosso caso. As mulheres são as mais “eficientes” pois, para além de se disporem com mais facilidade a ajudar, têm um leque mais vasto de um “suposto conhecimento médico” e são mais prevenidas porque trazem sempre consigo um stock de medicação “muito bem aviado” – para alguma coisa servem as bolsas enormes que trazem às costas – e são elas que “prescrevem” às pessoas em sofrimento o que devem tomar, com base na sua experiência pessoal, numa vontade de ser útil ao próximo e num “Deus queira que dê certo”. É assim ou por decisão própria, que nos automedicamos frequentemente, às vezes correndo riscos sérios sem o saber.

Por alguma razão surgiu o ditado popular que “de médico e louco, todos temos um pouco”. É que temos uma tendência geral para “dar receitas” a toda a hora. Se alguém ao nosso lado diz que está com dor de cabeça, a “receita” é instintiva: “Toma Ben-U-Ron que isso passa”. Mas se a dor é num braço ou na perna, o “médico de serviço” ao lado recomenda um “Brufen” porque além do efeito analgésico (tira a dor) também é anti-inflamatório. Se outrora houvesse alguém a espirrar o diagnóstico era “estás constipado” e a receita um “mete-te já na cama, toma um chá quente com mel e agasalha-te” ou, mais resumidamente, um “abafa-te, avinha-te e abifa-te”. Mas hoje, como já estamos muito “formatados” no receituário farmacológico, não são as mezinhas que aconselhamos, mas antes um “Atarax” que faz parar o pingo do nariz e alivia a respiração. Mais ainda, já somos suficientemente capazes de aconselhar ao nosso vizinho e “paciente” que precisa de ser operado às varizes, tirar as cataratas, arrancar o dente ou meter uma prótese da anca, caso contrário cada vez anda com mais dificuldade e maiores serão as suas dores a caminhar. Pensando bem, esta nossa “veia de médico” deveria dar-nos para aconselhar os “pacientes” a procurar conselhos de quem é realmente responsável, em vez de estarmos a querer impingir receitas baseadas em conhecimentos de “Espírito Santo de orelha”. E há riscos, mesmo em medicamentos de consumo corrente como é o caso do “Paracetamol” (Ben-U-Ron), um dos que é mais vendido (e sugerido por nós, leigos), pois a sua utilização em excesso pode levar a complicações. 

A facilidade de acesso à informação convenceu muito boa gente que basta ler artigos na net e consultar a Wikipédia para ser especialista e estar abalizado a emitir opiniões e prescrever receituário. E já vimos isso de forma assustadora em muitos órgãos de informação durante a crise pandémica, onde toda a gente tinha opinião sobre assuntos que pertencem à esfera médica. Políticos, sociólogos, psicólogos, artistas, jornalistas e muitas outras pessoas cujo contacto com um hospital se limitou a estar sentado numa sala de espera, gente que não percebe patavina do assunto, permitiram-se emitir opiniões sobre as vacinas, defendendo o não à vacinação, fazendo crer que quem nada percebe são os cientistas e estudiosos que as desenvolveram. E os exemplos piores vieram de responsáveis mundiais como Trump, Bolsonaro e outros, ao darem a sua opinião de leigos com estatuto de autoridade médica sobre como controlar a pandemia. Trump chegou a sugerir que se injetasse desinfetante pelos brônquios dos infetados, tendo sido registados muitos casos de intoxicações em gente que seguiu a sua sugestão. Já agora, qualquer um pode ter um blogue com aspeto muito sério e profissional onde ensina a emagrecer numa semana, a fazer exercício para deixar de usar óculos, eliminar a queda do cabelo e outras maleitas humanas. E tudo cientificamente comprovado. Se de médico e louco todos temos um pouco, não se pode confundir a sabedoria popular genuína, baseada na tradição e transmitida de geração em geração com o conhecimento à pressa e sem critério nos média ou em qualquer site da moda.

Bom seria que fôssemos capazes de evoluir na medicina tradicional e desenvolver os conhecimentos milenares, pois é verdade que muitas receitas de raízes, ervas e larvas usadas antigamente na cura das doenças começam a ser aceites na medicina alopática e homeopática. E os banhos de imersão, sangrias e a aplicação de larvas para curar as feridas, além de sanguessugas que voltam a ser usadas como terapia. 

Bom seria que a medicina tradicional encontrasse solução para a dor de cotovelo, a ganância, o egoísmo e a falta de humanidade. Era certo ter clientela garantida …

A morte é o nosso maior “tabu” …

A morte tornou-se no maior tabu da nossa sociedade. Nem sexo nem drogas se lhe comparam. Ver, ouvir ou até, simplesmente, falar dela, é algo de que fugimos “como o diabo da cruz”. Se quando eu era criança a maioria das pessoas quase sempre morria em casa, no meio das suas coisas, no seu ambiente e rodeado pela família, pouco a pouco e de forma sub-reptícia começou-se a empurrar esse fenómeno porta fora, a afastá-lo para o mais longe possível ao contrário da vivência desse tempo, de tal forma que agora a maioria das vezes a morte só acontece nos hospitais e lares ou noutras instituições, mas sempre e sempre longe de casa. Começamos por expulsá-la das nossas vidas e depois também, das nossas conversas. Deixou de ser falada, tornou-se invisível. Até deixamos de pronunciar o seu nome como se tivesse peçonha. A morte passou a ser uma estranha para nós e sempre que nos é possível, só estabelecemos algum contacto à distância de uma mensagem de condolências, de um acompanhamento afastado no cortejo fúnebre. E agora passamos a vida a evitá-la, a negá-la e a viver num “faz-de-conta” como se a morte não existisse. E a nem falar nela como se o simples falar a possa atrair. Ora, se ela é uma certeza, uma inevitabilidade, não seria muito mais racional prepararmo-nos para o momento em que nos bater à porta? Mas não é assim e o medo de a encarar com naturalidade, assusta-nos e bloqueia-nos, fazendo com que deixemos sempre tudo para depois. Ora, como é inevitável, não pode ser considerada uma derrota da pessoa e nem uma vitória da doença ou do que quer que seja que a faz acontecer. Nada disso, já que é simplesmente a vida ou o seu fim, de que faz parte integrante.   Desperdiçamos tempo e vivemos como se não fôssemos morrer, nem hoje nem nunca, negando a realidade que nos vai surgir no caminho e trocando as prioridades. E mais tarde vem um “Ah, se eu soubesse o que sei hoje”? Só quando chegam algumas doenças graves, acidentes, epidemias ou pandemias como a provocada pela Covid-19 e ela nos bate à porta sem avisar nem pedir licença, como que saímos da ilusão em que vivemos de que somos mais fortes que ela, na fantasia de que a podemos fintar ou até enganar. E aí a questão não é ser ou não ser mais forte que ela, porque ela faz parte de nós e nós dela e é isso que temos de interiorizar.                                                                                                           Se virmos bem, evitamos dizer a palavra “morrer” ou “morto”, como se as palavras tenham “lepra”. Quase sempre são substituídas por um “falecer” e “falecido”, por “finar-se” e “finado”, quando não o simples “foi-se”, “apagou-se” ou “já não está entre nós”. E para os religiosos, um “está com Deus”.                                                                                             O velório era em casa do morto, por mais humilde que fosse e muitas vezes não tinha um mínimo de condições, a começar pela largura das portas, quase sempre insuficientes para passar o caixão. Era preciso inventar para tirar o caixão de casa com o morto dentro, pois não se podia pedir ao falecido para se levantar, sair de casa pelo seu pé até fazerem sair o caixão de lado e sem a tampa, para voltar a “instalar-se” comodamente e de novo no seu último “fato”. Mas era a sua casa, para a vida e até para a morte. Tantas vezes ficava no “seu” quarto durante uma noite por não haver uma sala, velado pelos familiares, amigos, vizinhos e conterrâneos, que se revezavam durante a noite quase sempre aquecida com uma garrafa de bagaço. E era dali que partia para a sua última cerimónia religiosa na igreja local e depois para o cemitério. Não havia traumas por se ver o caixão e o corpo do morto. Lembro-me de José Barbosa da Mota, um homem que veio do Alto Minho para ganhar a vida entre Macieira e Aveleda, até a morte o levar. Vivia sozinho e logo que juntou algum dinheiro, comprou um caixão que colocou atrás da porta de entrada da casa humilde onde vivia, para garantir que teria um “fato” à medida. Durante anos viveu e conviveu com ele sem qualquer assombramento. Ora, também o tempo acabou por empurrar o velório para fora pois a sociedade foi criando gradualmente espaços externos para se depositar o corpo, as chamadas “capelas” ou “casas mortuárias”, evitando que ao sair do hospital ou Lar tenha de passar por sua casa e “devassar” o espaço que era seu, mas já deixou de ser, como se isso viesse a deixar algum “assombramento” em casa. E todos aderimos a este processo porque mantem o morto à distância, é mais “higiénico” dizem, dá um certo “alívio” por não ter de se viver com ele mais 24 horas seguidas, pelo menos, e torna mais leve todo este processo doloroso que é a perda e separação de um ente querido.                                                                         Enquanto antigamente as crianças vivenciavam e eram inteiradas na realidade da morte, integrando na prática os rituais fúnebres a partir do funeral (e eram sempre muitas as que faziam parte das “cruzadas” e acompanhavam o morto à igreja e depois ao cemitério), hoje foram afastadas e “protegidas” para não sofrerem traumas psicológicos com consequências na sua saúde (ficando em casa agarradas ao telemóvel ou computador que as pode atrofiar bem mais que um funeral), coisa em que ninguém pensava no meu tempo de criança sempre que tive e tivemos de participar em tantos funerais mesmo quando o morto não pertencia à família. Até essa proteção e distanciamento excessivos a que as crianças hoje estão sujeitas acabam por não ser benéficas e nem sequer as ajudar a crescer.                                                              Séneca dizia que “erramos ao ver a morte à nossa frente como um acontecimento futuro, enquanto parte dela já ficou para trás, pois cada hora do nosso passado já pertence à morte”.                       Devemos temer menos a morte e muito mais uma vida insuficiente, inútil ou vivida pela metade. Temos de aprender a viver como deve ser, para saber morrer bem. E de perceber que a morte nos dá uma lição grandiosa: de que tudo é transitório. Porque chegamos aqui nus, ganhamos um mundo de bens, mas, ao partir, voltamos a ir sem nada, completamente nus.                                                                                            E, para além de tudo, seguir o conselho de Freud: “Se queres poder suportar esta vida, tens de estar pronto para aceitar a morte”. Porque se não fizermos a aceitação da morte, não seremos verdadeiramente livres nesta vida …                                              

Este “carro” só pega de “empurrão” … quando “pega …

Vivemos tempos difíceis depois de atravessar a pandemia do Covid-19 de que ainda verdadeiramente não saímos e de sofrer por tabela as consequências da guerra na Ucrânia, com uma inflação galopante que faz mingar o valor do dinheiro no nosso bolso e que dia após dia dá para comprar menos comida para casa. Mas, por mais difícil que tenha sido o ano, por mais confuso e tresloucado que este mundo se encontre, por mais que os pais invistam mais tempo em subir cada vez mais alto na sua profissão relegando para segundo plano o tal investimento na família e por mais que se alimente esta correria louca de todos os dias sem se saber bem para onde, num atropelar do outro sem sentido, durante pelo menos um dia do ano permitimo-nos acreditar no Natal, no milagre da bondade humana em nome de um Deus feito Menino e que no ano seguinte tudo vai ser resolvido. 

Sei que dizemos sempre: “Mas um dia é tão pouco em 365 dias que tem o ano”! Também sou daqueles que dizem o mesmo, mas cada um de nós tem de fazer a sua parte para que o “espírito natalício” que prevalece nos nossos corações nesta época do ano, essa alegria de estar com as pessoas de quem gostamos, esse respeito e amor pelo próximo e essa generosidade que nos enche o coração, se estenda por mais e mais dias até ocupar o ano todo.

Olho ao meu redor na sala cá de casa onde já prevalecem os enfeites dum Natal que desejo em família e penso na simplicidade de Belém, do nascimento de Jesus no seio de uma família como a nossa, que é preciso valorizar por ser quase sempre o porto de abrigo onde todos podemos voltar em momentos difíceis. E deixo-me atrair pela ternura do Menino Jesus, nascido pobre, frágil e perseguido, no meio de nós, para nos dar o seu amor. Ele é o centro do Natal e sem Ele, que Natal seria este? 

É certo que as nossas fragilidades humanas foram aproveitadas para fazer incluir o Natal no calendário comercial do mundo e o marketing e a publicidade encarregaram-se de criar e recriar os mais diversos e sofisticados engodos para nos distrair do essencial, focar o acessório e levar a consumir de forma descontrolada como se fosse obrigação o ter de comprar, trocar prendas tantas vezes inúteis, atraindo a nossa atenção para as luzes dos shoppings e centros comerciais, como que sonâmbulos hipnotizados. E o Menino? Ora, o significado do Natal é uma mensagem de amor e aproximação ao próximo. Se soubermos aprender com ele, crescemos em espírito e como pessoas. Por isso, os cristãos devem estar preocupados pois o nascimento de Jesus está a perder o lugar principal a favor dum consumismo selvagem que o Pai Natal representa. Mas cabe a cada família católica explicar às crianças diante do presépio em casa que o Menino é verdadeiramente símbolo do nosso Natal, muito para além do folclore comercial.    

O Natal ensina-nos que há duas formas diferentes de manifestarmos o nosso amor pelos que nos rodeiam, que fazem parte da família, do círculo de amigos ou até de desconhecidos. Uma delas, a mais difícil, é sofrer pela pessoa amada. Foi isso que Jesus fez e nos ensinou através da encarnação. A outra, a mais comum neste tempo de encontro, é o dar presentes, mas sempre que possível que sejam úteis e não fúteis.

Aproveitando o movimento consumista que assola a época de Natal, podemos ser verdadeiros cristão se quisermos entender e viver essa época como um período de agradecimento por tudo o que Cristo é e significa, além do que nos concede. E, aproveitando o papel lúdico do Pai Natal, dos presentes e das expectativas que esse período gera nas crianças, jovens e até nos adultos, devemos entender que, tal como o velhinho das barbas brancas, todos somos e temos de exercer o nosso papel de Pais e Mães Natal não só nesta época, mas também em todas as épocas do ano, dando-se, ajudando e promovendo a dignidade dos mais necessitados. E há exemplos pelo mundo que devemos seguir.

Os Correios do Brasil inteiro lançaram uma campanha de Adoção de Cartas de Natal. Há milhares de crianças que, na esperança de serem atendidas pelo “Bom Velhinho”, enviam cartas endereçadas ao Pai Natal fazendo os mais variados pedidos. Para atendê-los, os Correios lançaram mão da ajuda voluntária de cidadãos. Com o apoio de muita gente que se colocou como padrinhos e ajudantes, ao longo de anos conseguiram realizar o sonho de um milhão de crianças, sonhos que vão desde bicicletas, bonecas e demais desejos de consumo, às mais reais necessidades como material escolar, cabaz alimentar, pedido de emprego para os pais e até cura de doenças. Dizia um funcionário dos Correios, há mais de vinte anos, que “esta época e os pedidos mais diversos, são uma verdadeira dádiva de Deus, uma oportunidade única de vermos que as dificuldades que achamos que temos na vida são muito pequenas diante das muitas necessidades e dos apelos de irmãos com realidades tão diferentes”.

Em Portugal, a Make-A-Wish (satisfazer um desejo) tem por missão conseguir a realização de desejos de crianças e jovens dos 3 aos 17 anos em todo o território nacional, com doenças graves, progressivas, degenerativas e malignas, proporcionando-lhes um momento de força, alegria e esperança. Para uma criança que está gravemente doente, a realização do seu desejo tem o poder de impulsionar a esperança, e a esperança é o valor mais precioso que se lhe pode dar. Todos nós podemos (e devemos) apadrinhar esta nobre causa, ainda que para isso se utilize o consumo para conseguir levar a esperança a quem sofre. Vale a pena apadrinhar este movimento e este tempo de Natal convida a investir na satisfação de uma criança em sofrimento. De uma coisa podemos ter a certeza: de que a prenda é bem aceite, dá uma enorme alegria a quem a recebe e a recompensa de quem dá não é menor. 

Neste Natal, que a alegria de dar tenha um retorno maior para quem recebe, mais ainda para quem busque o verdadeiro sentido do Natal de se fazer presente e de ser presente. E nascer com o Menino todos os dias, para a caridade e o amor ao próximo.

Um Natal de presentes com sentido

Vivemos tempos difíceis depois de atravessar a pandemia do Covid-19 de que ainda verdadeiramente não saímos e de sofrer por tabela as consequências da guerra na Ucrânia, com uma inflação galopante que faz mingar o valor do dinheiro no nosso bolso e que dia após dia dá para comprar menos comida para casa. Mas, por mais difícil que tenha sido o ano, por mais confuso e tresloucado que este mundo se encontre, por mais que os pais invistam mais tempo em subir cada vez mais alto na sua profissão relegando para segundo plano o tal investimento na família e por mais que se alimente esta correria louca de todos os dias sem se saber bem para onde, num atropelar do outro sem sentido, durante pelo menos um dia do ano permitimo-nos acreditar no Natal, no milagre da bondade humana em nome de um Deus feito Menino e que no ano seguinte tudo vai ser resolvido. 

Sei que dizemos sempre: “Mas um dia é tão pouco em 365 dias que tem o ano”! Também sou daqueles que dizem o mesmo, mas cada um de nós tem de fazer a sua parte para que o “espírito natalício” que prevalece nos nossos corações nesta época do ano, essa alegria de estar com as pessoas de quem gostamos, esse respeito e amor pelo próximo e essa generosidade que nos enche o coração, se estenda por mais e mais dias até ocupar o ano todo.

Olho ao meu redor na sala cá de casa onde já prevalecem os enfeites dum Natal que desejo em família e penso na simplicidade de Belém, do nascimento de Jesus no seio de uma família como a nossa, que é preciso valorizar por ser quase sempre o porto de abrigo onde todos podemos voltar em momentos difíceis. E deixo-me atrair pela ternura do Menino Jesus, nascido pobre, frágil e perseguido, no meio de nós, para nos dar o seu amor. Ele é o centro do Natal e sem Ele, que Natal seria este? 

É certo que as nossas fragilidades humanas foram aproveitadas para fazer incluir o Natal no calendário comercial do mundo e o marketing e a publicidade encarregaram-se de criar e recriar os mais diversos e sofisticados engodos para nos distrair do essencial, focar o acessório e levar a consumir de forma descontrolada como se fosse obrigação o ter de comprar, trocar prendas tantas vezes inúteis, atraindo a nossa atenção para as luzes dos shoppings e centros comerciais, como que sonâmbulos hipnotizados. E o Menino? Ora, o significado do Natal é uma mensagem de amor e aproximação ao próximo. Se soubermos aprender com ele, crescemos em espírito e como pessoas. Por isso, os cristãos devem estar preocupados pois o nascimento de Jesus está a perder o lugar principal a favor dum consumismo selvagem que o Pai Natal representa. Mas cabe a cada família católica explicar às crianças diante do presépio em casa que o Menino é verdadeiramente símbolo do nosso Natal, muito para além do folclore comercial.    

O Natal ensina-nos que há duas formas diferentes de manifestarmos o nosso amor pelos que nos rodeiam, que fazem parte da família, do círculo de amigos ou até de desconhecidos. Uma delas, a mais difícil, é sofrer pela pessoa amada. Foi isso que Jesus fez e nos ensinou através da encarnação. A outra, a mais comum neste tempo de encontro, é o dar presentes, mas sempre que possível que sejam úteis e não fúteis.

Aproveitando o movimento consumista que assola a época de Natal, podemos ser verdadeiros cristão se quisermos entender e viver essa época como um período de agradecimento por tudo o que Cristo é e significa, além do que nos concede. E, aproveitando o papel lúdico do Pai Natal, dos presentes e das expectativas que esse período gera nas crianças, jovens e até nos adultos, devemos entender que, tal como o velhinho das barbas brancas, todos somos e temos de exercer o nosso papel de Pais e Mães Natal não só nesta época, mas também em todas as épocas do ano, dando-se, ajudando e promovendo a dignidade dos mais necessitados. E há exemplos pelo mundo que devemos seguir.

Os Correios do Brasil inteiro lançaram uma campanha de Adoção de Cartas de Natal. Há milhares de crianças que, na esperança de serem atendidas pelo “Bom Velhinho”, enviam cartas endereçadas ao Pai Natal fazendo os mais variados pedidos. Para atendê-los, os Correios lançaram mão da ajuda voluntária de cidadãos. Com o apoio de muita gente que se colocou como padrinhos e ajudantes, ao longo de anos conseguiram realizar o sonho de um milhão de crianças, sonhos que vão desde bicicletas, bonecas e demais desejos de consumo, às mais reais necessidades como material escolar, cabaz alimentar, pedido de emprego para os pais e até cura de doenças. Dizia um funcionário dos Correios, há mais de vinte anos, que “esta época e os pedidos mais diversos, são uma verdadeira dádiva de Deus, uma oportunidade única de vermos que as dificuldades que achamos que temos na vida são muito pequenas diante das muitas necessidades e dos apelos de irmãos com realidades tão diferentes”.

Em Portugal, a Make-A-Wish (satisfazer um desejo) tem por missão conseguir a realização de desejos de crianças e jovens dos 3 aos 17 anos em todo o território nacional, com doenças graves, progressivas, degenerativas e malignas, proporcionando-lhes um momento de força, alegria e esperança. Para uma criança que está gravemente doente, a realização do seu desejo tem o poder de impulsionar a esperança, e a esperança é o valor mais precioso que se lhe pode dar. Todos nós podemos (e devemos) apadrinhar esta nobre causa, ainda que para isso se utilize o consumo para conseguir levar a esperança a quem sofre. Vale a pena apadrinhar este movimento e este tempo de Natal convida a investir na satisfação de uma criança em sofrimento. De uma coisa podemos ter a certeza: de que a prenda é bem aceite, dá uma enorme alegria a quem a recebe e a recompensa de quem dá não é menor. 

Neste Natal, que a alegria de dar tenha um retorno maior para quem recebe, mais ainda para quem busque o verdadeiro sentido do Natal de se fazer presente e de ser presente. E nascer com o Menino todos os dias, para a caridade e o amor ao próximo.

Este mundo de hipocrisia e inveja …

Ora agora que eu tinha tomado a decisão de ir assistir ao primeiro jogo de Portugal contra no Qatar a contar para o Campeonato do Mundo de Futebol, contra o Gana, quando já mandara fazer reserva da viagem de avião, além de me sujeitar a ter de dormir num hotel de Mascate, em Omã, por falta de capacidade hoteleira no Qatar, é que “soube” não ser país recomendável e ninguém de um país “civilizado” como o nosso deve viajar para lá, muito menos para assistir a jogos de futebol em estádios construídos com mão de obra de migrantes, especialmente asiáticos e africanos, a  trabalhar em condições sub-humanas. Como é que só soube isto a tão poucos dias do embarque? Claro que, mal me inteirei do que os “catarianos” fizeram, fui logo a correr à agência de viagens e desisti das reservas que fizera para ver se ia a tempo de não pagar nada da viagem e hotel, caso contrário ia ter de me ver e desejar para reaver o meu rico dinheirinho como já me aconteceu num passado recente. E ainda bem que a imprensa e os nossos políticos estavam bem atentos e descobriram a tempo estas coisas …

Se eu andasse neste mundo a “ver passar os comboios” até me podia ter acontecido algo parecido com isto que escrevi, mas não é o caso. A verdade é que, logo que em 2 de Dezembro de 2012 se soube que a Rússia organizava o Campeonato do Mundo de Futebol em 2018 e o Qatar em 2022, algumas vozes denunciaram a eventualidade de ter havido corrupção para o Qatar ter conseguido algo de impensável, dado ser um pequeno país, sem peso no mundo do futebol e onde os direitos humanos são letra morta. E nessa altura não se viu nenhum movimento sério para contrariar tal decisão e muito menos se falou nem contestou a Rússia que iria organizar a edição de 2018. Ora, que se saiba e sabia já nesse tempo, a Rússia não é nenhum país modelo no que toca a direitos humanos, o que veio a ser comprovado muito recentemente com os crimes cometidos na Ucrânia. Mas, o Qatar e a Rússia não mudaram (aliás, esta mudou para muito pior) e não se viu ninguém com responsabilidades a promover campanha de rejeição à participação tanto num país como no outro, como se isso fosse uma forma de validar o regime ou qualquer política de discriminação.

Já se sabia então que nos tribunais do Qatar o testemunho de uma mulher vale metade do de um homem ou nem sequer o aceitam. Que nesse país a poligamia é permitida e a flagelação é usada nos castigos de quem consome álcool ou tem relações sexuais ilícitas. O adultério é castigado com chibatadas e as relações homossexuais com a pena de morte. Que os trabalhadores estrangeiros de mão de obra pouco qualificada são muitas vezes explorados e quiçá remetidos à condição de escravatura com espancamentos, retenção de pagamento, confisco de passaporte, cobranças indevidas, restrições à liberdade, ameaças e agressões sexuais além de prisões arbitrárias. E como se isso não lhes bastasse, muitos deles são explorados por engajadores no seu país a quem têm de pagar taxas exorbitantes. E cá entre nós, se pensarmos bem, não ouvimos já falar de algumas coisas parecidas em Portugal?

Claro que, mediante o coro inicial de contestação, o regime do Qatar prometeu fazer mudanças em todas as questões relativas a direitos humanos, para garantir a organização do Mundial de Futebol naquele país do Médio Oriente (que veio a conseguir através de meios pouco ortodoxos e lícitos) e que levariam à demissão de altos dirigentes do mundo do futebol. Mas, o certo é que o evento foi atribuído ao Qatar e não se viu no mundo civilizado nenhuma tentativa de boicote quando tal era possível e justo. Por isso, “quando a noiva está no altar” e nós somos “convidados” de pleno direito e aceitamos, esperando apanhar o “ramo de flores” com que os portugueses sonham, hoje mais do que nunca, não faz sentido que, agora, se levantem “virgens ofendidas” e moralistas de meia-tigela a gritar “aqui d’el rei” e a apontar o dedo, e quando já validaram coisas piores. E que moral temos para falar de “exploração de migrantes” se fechamos os olhos ao que fizemos aos emigrantes de Ourique e outras “paragens” nacionais onde é precisa mão de obra barata? Quantos anos andamos a assobiar para o lado? E até já nos esquecemos que milhares deles continuam por cá, muitos em situação que “valha-nos Deus”! Nem de propósito, hoje foi notícia mais um caso no Alentejo …

O Mundial do Qatar foi decidido em 2010 por uma quadrilha de gente corrupta, afastada (de bolsos cheios) por indecente e má figura, mas tem sido essa a realidade do mundo do futebol. Só os ingénuos creem no Pai Natal, mas mesmo assim esperam receber prendas! Sendo ele jogado no deserto, na areia, faria mais sentido ser futebol de praia e já a contestação não teria o mesmo mediatismo. O maior problema é que, debaixo dos oito estádios existe um enorme barril de petróleo e gás natural que dá para fazer o Campeonato mais caro da história e sobra uma riqueza imensa mesmo depois de umas quantas “prendas” que muitos mais gostariam de ter recebido. Não sei se é hipocrisia ou inveja o que meio mundo político anda a fazer chafurdando na lama, ma sem querer sujar-se.

O Qatar é um país pequeno, sem expressão, mas onde há dinheiro de sobra para querer o Mundial. E tem esse direito de se pôr em “bicos de pé” para ser visto por todo o mundo e a ter as regras e normas de vida que entendem. Perceberam que o futebol é uma boa montra, daí a aposta ter sido muito alta. Daí terem apostado forte nas estruturas, como apostaram na FIFA e nas pessoas que a serviam e decidiram a escolha do organizador, sabendo da sua fragilidade: recetividade à corrupção. E como dinheiro não era problema … 

O certo é que nenhum país impediu a sua seleção de participar, que se saiba nenhum jogador se recusou a estar presente por ser naquele país, os governantes apesar de mandarem uns bitaites, lá vão parar a título de dar força à sua seleção e as poucas manifestações são muito envergonhadas e discretas para não ser posto em causa o direito de jogar ou até assistir, coisa que ninguém quer. Esse ruído deveria ter sido muito forte e atempado sobre a FIFA e os representantes das Federações nacionais, os únicos responsáveis por o Mundial se estar a realizar ali. Porque os governantes do Qatar fizeram o seu papel. E quem não gostar de ir lá, que fique em casa, mas seguramente vai ver a seleção do seu país, ainda que pela televisão.

No entanto, o barulho provocado por milhares de vozes ao gritar golo e os cânticos dum estádio inteiro a incentivar a sua seleção abafarão o “ruído” fora de tempo à volta do país que acolhe o Mundial, calam as promessas de Marcelo em ir falar lá sobre direitos humanos, como nos farão esquecer “misérias” internas que nos deviam envergonhar.

Mas que não fiquem dúvidas: Eu sou dos que invejo e muito todos os cerca de 313.000 cidadãos do Qatar, porque gostaria de usufruir do mesmo privilégio que eles têm. Não, não é o facto de terem o Mundial em 8 estádios espetaculares, nem de poderem ver os jogos ao vivo. Só os invejo por serem dos poucos habitantes deste planeta que não têm de pagar impostos … 

O sucesso de uma sociedade: Educação

Tive de parar o carro perto da porta de entrada duma escola e dei comigo a observar o caos provocado pelo enorme movimento de carros, de pais e mães a recolherem os filhos para o regresso a casa. E pensei no quanto mudamos em relação à minha infância e de como somos agora tão diferentes dos japoneses onde os pais não levam os filhos à escola. São as crianças que começam desde os 6 anos de idade a ir sozinhas ou em grupo, quando muito acompanhadas por alunos mais adiantados. É assim que aprendem a ser responsáveis. Quando era criança também era a pé, sozinho ou na companhia dum vizinho que ia para a escola, em liberdade e com alguma responsabilidade.  

O sistema de educação japonês é reconhecido mundialmente e o povo é famoso pela sua inteligência, saúde, educação e bem-estar. Mas o que é que torna essa nação tão diferente do resto do mundo? Uma das razões está no sistema de ensino, que é diferente e interessante. Defendem eles que as crianças devem aprender boas maneiras antes de conhecimentos. Assim, a escola nos 3 primeiros anos não as julga pelos seus conhecimentos, mas procura incutir-lhes as boas maneiras e desenvolver-lhes o caráter, sendo ensinadas a respeitar as outras pessoas e ser gentis com os animais e a natureza. Aprendem ainda o que é a generosidade, coragem, justiça, compaixão, autocontrole e empatia. Para eles, de nada serve o conhecimento se um ser humano não cultiva a generosidade e os valores morais antes de tudo mais. Não me parece que estas sejam as preocupações principais do nosso ensino básico nos 3 primeiros anos, nem sequer nos anos seguintes. Mas que fazem muita falta às nossas crianças e futuros adultos, não restam dúvidas! E só não vemos se não quisermos …

No Japão, antes de começar o ano letivo cada estudante recebe um calendário escolar com todas as atividades e se algum professor faltar, a aula não será suspensa e não haverá “furo” pois qualquer aluno está capacitado para a dar graças ao facto de ter o programa consigo. Em quase todas as escolas não existe equipa de limpeza. No Japão e noutros países asiáticos. Desde muito pequenos, eles são ensinados a trabalhar em equipa e a ajudar-se mutuamente. É por isso que, tanto professores como alunos, têm a responsabilidade de limpar a escola. Sempre! E é assim que o tempo e esforço gastos nas tarefas de limpeza faz com que as crianças respeitem o seu trabalho e o dos outros. Ponho-me a imaginar o que diriam ou até o que fariam alguns “papás” cá do burgo ao saber que os seus adorados filhinhos faziam a limpeza da escola! Coitados dos professores. Se mesmo sem isso já “levam no focinho” de alguns pais imbecis e destravados …

A educação começa em casa. Os pais ensinam seus filhos e dão ênfase ao respeito pelas pessoas da terceira idade. Fazem-no principalmente para honrar a sua experiência e sua sabedoria. Nesta cultura, o valor familiar é fundamental. Eles valorizam a família sobre todas as coisas. O amor, a confiança e o carinho, devem permanecer entre as diversas gerações, desde os pais aos bisavós. Além dos assuntos tradicionais, os estudantes japoneses ainda aprendem caligrafia japonesa e poesia. As duas classes ensinam as crianças a respeitar a sua própria cultura e as tradições seculares. Pelo contrário, cá entre nós, a “malta” acha que as tradições são “coisas de velhos” e não interessam a ninguém!

Quase todas as escolas japonesas exigem que os seus alunos usem uniforme, com o objetivo de eliminar barreiras sociais entre eles e promover um sentido de comunidade entre estudantes. E é curiosa a taxa de presença escolar: 99,9%!!! É que os estudantes japoneses não costumam faltar às aulas. Quem mais se pode orgulhar disso? Já para não falar na quase nula taxa de analfabetismo …

Quanto aos professores, são as pessoas mais respeitadas e admiradas da sociedade e por isso chamados de “senseis” (mestres), pois além de terem a responsabilidade de passar seus conhecimentos às novas gerações, têm ainda a difícil tarefa de ajudar a formar o caráter dos jovens. O governo assume que são de importância crucial e por isso capacita-os regularmente e paga-lhes excelentes salários. Diz-se até que são os únicos que não têm de fazer vénia ao imperador. Ora, se virmos bem, cá em Portugal os professores estão “muito melhor” que os seus congéneres japoneses. Ó se estão! O estado pede-lhes sempre muito, mas dá-lhes sempre pouco e assim fica equilibrado. Os pais dos alunos de vez em quando presenteiam-nos com alguns “mimos” com que eles não contam, mas que deviam estar à espera. Os alunos, sempre que chamados à atenção, prometem-lhes a “atenção” dos “papás”! Quanto à sociedade em geral, preocupa-se mais quando falta o picheleiro ou o eletricista (com todo o respeito que eles merecem)!

Por tudo isto podemos perceber porque é que o Japão, apesar de não ser um país com a dimensão da Rússia ou do Brasil, apesar de ter no seu território mais de 200 vulcões com 100 deles ativos, apesar de ter saído da Segunda Guerra Mundial derrotado e devastado com a sua economia no fundo, tem hoje um PIB (Produto Interno Bruto) que é 20 vezes maior que o nosso e que faz dele a terceira maior economia mundial, somente atrás dos Estados Unidos e da China. E tudo se deve à grande aposta que este país fez na educação, a causa principal do seu sucesso e do milagre económico.   

A grande lição que o Japão nos dá é de que devemos começar sempre pela educação. É a base fundamental de qualquer sociedade e um dos seus grandes pilares. Assim o entenderam e puseram em prática os japoneses com o sucesso que lhes é reconhecido. Talvez devêssemos meditar sobre os seus méritos e, quiçá, aprender com eles, a começar por essa coisa de se ensinar “boas maneiras” às nossas crianças além de valores morais antes mesmo das ciências e da matemática, para no futuro termos uma sociedade de “boas pessoas”, cidadãos educados, responsáveis e solidários, se é que achamos que isso pode interessar ao nosso futuro comum …

A lei do “menor esforço” e a fatura que aí vem …

Os investigadores justificam a existência da “lei do menor esforço” através das orientações que o nosso cérebro dá ao organismo para economizar energia, isto é, atividade física. E na realidade, a vida dos seres humanos foi sendo feita no sentido de reduzir o esforço físico em todos os trabalhos fazendo-se substituir pelas máquinas. Assisti a esse “filme” desde a minha infância, num tempo em que a maioria das profissões exigia das pessoas muito esforço, sacrifício e sofrimento. 

Há setenta anos atrás não existiam máquinas e todo o trabalho era manual. Quando muito, tendo o auxílio de algum animal, como o boi e o cavalo. O braço e a sua força eram o motor, se bem que todo o corpo era esforçado, em muitos casos ao máximo. Para se ter uma noção do que isso significava basta dizer que o adubo era embalado em sacos de … 100 kgs, transportado por via-férrea em vagões carregados de sacos até ao teto e descarregados do vagão para o armazém, às vezes a dezenas de metros de distância, às costas de meia dúzia de homens, carregando cada um o seu saco, um atrás do outro até o vagão ficar vazio. E havia épocas em que era saco a seguir a saco e vagão a seguir a vagão. E o que acontecia com o adubo acontecia com muitos outros produtos embalados em sacos de 100 quilos …

Os pedreiros construíam as casas com grandes pedras de granito a pesar centenas de quilos cada, fazendo-as subir aos trambolhões sobre vigas de madeira à força de braço até ao seu lugar em cima da parede. Só quando esta chegava à altura dum homem se utilizava a engenhoca rudimentar feita com um sarilho e dois eucaliptos em V invertido com uma roldana no vértice para levar as pedras ao cimo da parede em construção.

Ora, o trabalho era duro e sujo, tanto para o carregador, como para o pedreiro, lavrador, carpinteiro, ferreiro ou jornaleiro. Ainda tenho viva a imagem do senhor Moura, jornaleiro de profissão, a “saibrar” uma mata. Cavou o terreno todo com um metro de profundidade e, enquanto cavava, ia enterrando mato para o aligeirar e enriquecer de matéria orgânica. Eram vidas suadas, esforçadas, sofridas, apesar de mal alimentadas.

Mas o engenho humano foi capaz de criar todo o tipo de mecanismos para o aliviar das tarefas pesadas, pelo que hoje já (quase) ninguém carrega grandes pesos, a não ser no ginásio. O senhor Ricardo chegou no furgão, estacionou e tirou a botija de oxigénio que colocou num carrinho de transporte apropriado. Com toda a facilidade levou-a até casa e só demorou o necessário para trocar as botijas, regressando com a vazia também colocada no carrinho. Quando lhe perguntei se era fácil, respondeu: “Hoje isto é um luxo. Mas já trabalho há muitos anos na empresa e no princípio às vezes era muito duro. Tinha um cliente que vivia no 12º. andar, mas os elevadores não funcionavam porque lhe roubaram os cabos. Eu tinha de carregar a botija às costas pelas escadas, para cima e para baixo. Era duro”. Já o António saiu do camião, agarrou num comando e fez baixar uma plataforma traseira para onde se passou voltando a fazê-la subir ao nível da carga. E aí, com um porta-paletes manual, passou duas cargas para a plataforma que fez baixar com o comando até ao chão sem qualquer esforço. 

Apesar das décadas de evolução em que o espírito inventivo do ser humano e a necessidade e vontade de fazer mais em menos tempo fizeram com que surgissem as máquinas e acessórios mais diversos para ajudar o homem nas suas tarefas, quando não a substituí-lo, de já quase nada se carregar às costas, mas em mecanismos diversos e de uma máquina rasgar mais metros de estrada numa hora que um batalhão de homens escavava num dia, de se reduzir o peso de quase todas as embalagens (os sacos de adubo passaram de 100 quilos para 50 e depois para 20, havendo já embalagens de 10, de 5 e 1 quilo), a verdade é que algumas profissões continuam a ser de trabalho braçal e sujo, um estigma que afasta os jovens de hoje. É verdade que essas ninguém quer. Pelo facto de se ter o 12º ano, que mais não é que a antiga quarta classe, e sem experiência profissional, já se exige “um emprego limpinho”, algo como serviços administrativos, trabalho de receção, fiel de armazém. Enfim, uma rejeição liminar de empregos que exijam um pouco mais de esforço físico e não seja necessário ter de “pôr as mãos na massa”. Daí ser um drama e uma impossibilidade, conseguir um jovem para trabalhar na construção civil, seja pedreiro, trolha, serralheiro, carpinteiro ou outra do gênero. Um empresário da construção dizia que já não tem um “moço de massa” há mais de vinte anos e o dono de uma serralharia, que já lá vão oito anos sem que lhe entre porta dentro alguém que queira ser aprendiz.

É uma atividade onde a falta de mão de obra só poderá ser resolvida com a entrada de emigrantes e onde os valores salariais dum artista podem ultrapassar os de muitos licenciados. E ao dizer isto recordo a conversa que há mais de trinta anos tive com um grupo de franceses. Já nessa altura em França ganhava mais um operário da construção do que uma grande parte das pessoas licenciadas pois os franceses só queriam os “empregos limpinhos”, rejeitando as profissões “braçais” tidas por “menores”. Essas ficavam para os emigrantes. E muitos anos volvidos, aqui estamos nós na mesma situação. 

Na Costa Rica, onde a riqueza produzida por habitante é metade da nossa, esse tipo de empregos é sempre ocupado por emigrantes, no caso principalmente oriundos da Nicarágua, porque os cidadãos da Costa Rica se recusam a desempenhar tais funções. E o mesmo se passa em muitos outros países. Isto traz-me à memória uma frase de um cínico: “Nunca faças o trabalho que podes mandar alguém fazer por ti”. É assim que hoje nos vemos a braços com o problema de falta de mão de obra nessas profissões, alegadamente porque os jovens as rejeitam (muitos nem sequer querem ouvir falar nessa “coisa” a que chamam “trabalhar” …), pelo estigma e porque não, já para não falar da “sociedade de dependentes do estado” que os (des)governos vão aumentando constantemente e que não tarda muito a ser maior do que a daqueles que criam riqueza … e trabalham.

Shoichiro Toyota, que durante anos presidiu à Toyota, justificava o declínio do ocidente da seguinte forma: “Uma sociedade que mede o seu bem-estar por aquilo que não faz, pelo tempo de lazer que tem, está condenada ao fracasso”. Será só filosofia oriental ou nós vamos mesmo ter de pagar essa fatura pesada um dia destes?  

Chorar quem parte ou celebrar a vida

Num cemitério da Lituânia um homem para diante de uma sepultura e chora convulsivamente durante alguns instantes. Depois recompõe-se, vai um pouco mais adiante e detém-se frente a outra sepultura e entoa cânticos em honra da pessoa ali enterrada. E, passando de uma a outra, vai visitando mais algumas até se retirar na companhia da mulher que o espera e conforta. É o “visitador de campas” contratado por descendentes dos falecidos e pago para chorar ou cantar certo número de vezes por ano, conforme os seus desejos. Os mortos não são da sua família e muitos deles nem os conheceu. Diante daqueles em que tem de chorar, torna-se mais difícil pois tem de se comover, pensando em momentos tristes que o emocionem para que o choro e as lágrimas corram naturalmente. Já o faz há muitos anos, sendo um “trabalho” difícil para ele que é sensível e emotivo, embora tenha na mulher um apoio para superar a sua tristeza. O curioso da história é que alguns “contratantes” querem que chore diante da campa, mas outros desejam que cante. Quem estará certo? Diante de um túmulo devemos chorar ou cantar? Sem querer julgar tal costume cultural de chorar ou cantar, muito menos por interposta pessoa, penso que ambos têm razão. O choro ou a cantoria, a tristeza ou a alegria, são duas faces de uma mesma moeda: homenagear o morto.                                                                                                    O choro é o mais tradicional direito e expressão de luto. Sai-nos do interior quando sentido e faz parte dos rituais de separação e entrega dos entes queridos que partem. Mas a cantar também se chora, isto é, celebra a vida de quem parte como aquilo que foi mais importante e deve ser celebrado. Essas diferenças na despedida ao defunto são tão antagónicas de cultura para cultura, de país para país e até de região para região. Mas o que importa neste processo, é honrar a memória de quem nos deixa e consolar quem fica em sofrimento, cedendo-lhes o ombro para chorarem à vontade.                                                               No Brasil os funerais acontecem em 48 horas no máximo, reflexo de como o brasileiro encara a morte e na tentativa prática de encerrar o sofrimento o mais depressa possível. No México, o Dia dos Finados é uma das festas mais populares e alegres do mundo. É comemorado com muito entusiasmo, amor, música, comida e fantasias da tradição asteca e católica. O funeral na Rússia é uma manifestação alegre, com roupas coloridas, para honrar quem nos deixou e consolar quem fica. Na Irlanda, o velório ainda é melhor do que um casamento. A família convida os amigos para o pub (bar) preferido do defunto, onde existe muita comida, cerveja e uísque, muitas histórias alegres, risos, alegria e música ao vivo, para festejar e rever as boas memórias do falecido. Nos enterros tradicionais em Nova Orleães, nos Estados Unidos, uma banda acompanha o cortejo fúnebre e, da casa do morto ao cemitério, toca música jazz, triste e dolorosa, com a multidão de rosto sério e ar carregado. Porém, mal o caixão esteja debaixo de terra, a banda passa a tocar música animada, a festa inicia-se e não tem hora para acabar, com todo o mundo a dançar, a comer e beber. O funeral começa com as pessoas a chorar, manifestando tristeza por quem morre e termina com risadas e grande alegria, canto, bebida e festa, em celebração e homenagem à vida do defunto na sua passagem por este mundo.                                                                                                         Em Portugal a tradição ainda é o que era e choramos, embora sejam bem conhecidas as frases: “o choro é uma expressão de fraqueza”, “o choro é a arma dos fracos” e, numa variante um tanto machista, dizer: “homem que é homem não chora”. Porque o choro, apesar de ser um fenômeno físico-biológico em que o corpo, ou melhor ainda, os olhos, derramam lágrimas, também é a forma de exteriorizar as emoções, os estados de alma e sentimentos. É um facto que o ser humano chora.                                      Entre nós já não existem as carpideiras, mulheres vestidas de negro, completamente, e estranhas ao morto, contratadas para chorar nos velórios e enterros alheios, com a intenção de aumentar a emoção no funeral e a popularidade desse defunto, embora ainda continuem a existir nalgumas zonas do Brasil, Itália, Grécia e até na China. Ainda assisti a esse ritual de choro histérico e encomendado que me ficou gravado na memória pelo choque e medo que apanhei porque era eu uma criança muito pequena quando o ouvi pela primeira vez. Mas, e apesar disso, tanto no velório como no funeral, ainda é no choro que encontramos a melhor forma de comunicar o sentimento de perda e dor, embora num ambiente menos pesado que outrora. O chorar como expressão do luto, como forma de trabalhar a perda dos entes queridos e aliviar a dor, faz parte do ritual das Exéquias e, mais ainda, é um direito. O choro é catártico, tem uma força curativa, é parte dos ritos de separação e de entrega dos nossos entes queridos que partem. Precisamos disso como parte do luto de cada um. Porém, para quem prefere formas alternativas de manifestar nas despedidas, as agências funerárias mais credenciadas já dispõem de um serviço de música tocada e cantada ao vivo, com temas que vão dos clássicos, ao gospel e litúrgicos, adequados à cerimónia e ao gosto de cada um.                                             Durante o confinamento por causa da pandemia, alguém desabafava: “Chorei muitas vezes na vida. Chorei quando levei algumas palmadas da minha mãe, mas o choro mais profundo e doloroso foi quando ela morreu sem ter a possibilidade de me despedir dela e estar presente no seu enterro. Embora tenha chorado muitas vezes e saiba chorar, já não sei como o fazer, porque a morte passou não apenas a ser vista, mas a incomodar, a apavorar, sem o direito de chorarmos os nossos mortos e cauterizar as feridas através dos ritos porque, o sofrimento e dor, podem ser uma ocasião que aproxima o ser humano de Deus”.                                                                                                                       A morte faz parte da vida, mas não fomos educados para isso. A nossa educação tem essa lacuna e a morte é-nos estranha até à hora em que chega. E então, irrompe a dor e as lágrimas porque é assim na nossa tradição de séculos. E não me parece que tão cedo adotemos o canto, a comida, a bebida e até a alegria para celebrar quem morre, pois lá bem no fundo estamos formatados no modo triste e choroso e não há volta a dar. Mas, como “a vida é feita de mudança” …  

Adão e Eva foram felizes. Sem sogra …

O camião seguia à minha frente e, quando me aproximei, li a frase escrita em letras garrafais na traseira do veículo: “Feliz foi Adão que não teve sogra nem camião”. Não sei se o motorista tinha sogra ou se aproveitou o tema para “aligeirar” a dimensão do obstáculo que é um camião à frente de um ligeiro. E lembrei-me deste hábito que quase todos os homens têm de fazer piadas sobre sogras, mesmo que as não tenham ou, no caso contrário, tenham de dar graças a Deus pela sorte que têm com a sua. Sabe-se que é muito mais raro existir problemas entre sogra e genro e mais comum a guerrilha entre sogra e nora. É que o homem acaba por ser “adotado” pela família da mulher, mas a mulher, em geral, é vista como intrusa e questionada na família dele. Diz a estatística que os conflitos são mais frequentes entre as noras e suas sogras e a ciência descobriu que essa rivalidade está associada à existência da menopausa. O que nós ficamos a saber atualmente!!! 

E a prova de que sogras difíceis não são o maior problema da vida de um homem é o caso de Giovani Vigliotti, o americano que casou 104 vezes entre 1940 e 1981, usando o seu nome e mais 50 pseudónimos. As suas 104 sogras foram um problema bem menor que os 34 anos de prisão que apanhou por ter cometido tantas ilegalidades para estabelecer tal performance…

Em geral, os homens não desgostam das sogras. Não são o problema que domina a vida deles. Como diz um provérbio polaco, “o caminho para o coração da sogra é através da filha”. Aquilo que a maior parte das mães das mulheres quer, mais que tudo, é ver as filhas felizes. E não precisam de chegar tão longe como o Luís Costa, agricultor que foi notícia no Brasil, não pelos produtos agrícolas que produzia, mas por ter tido 50 filhos de duas mulheres, de uma cunhada e, veja-se lá, da sogra. E ainda há homens a fazer humor com a sogra, quando até podiam fazer coisas mais interessantes com ela! Ou estarei errado?  “A mulher foi a melhor coisa que Deus fez no mundo”, afirmou ele para justificar os 4 relacionamentos que teve, inclusive com a sogra que passou para, além da condição de mãe da mulher, mãe de um dos seus filhos …

A maioria dos dramas da vida real são provocados pela mãe dele, a sogra da mulher. Estudos indicam que mais de metade das sogras delas causaram-lhes problemas. Não sendo geral a todas as noras, uma sogra que se mete na vida do casal e opina permanentemente, implica e chateia até mais não, pode ser fatal para o relacionamento. 

O sentimento de posse de algumas mães pode transformá-las em sogras difíceis. Muitas consideram-se donas dos filhos desde o seu nascimento. Assim, quando um homem que já tem “dona” resolve levar a namorada para casa, a reação da sogra é considerá-la como uma ameaça ao seu poder materno. E reage com críticas, implicações e chantagem emocional. Por detrás de tudo, esconde-se uma disputa pelo poder de dominar o mesmo homem. A maioria das sogras tem um medo de perder o seu filho para outra mulher. Desde logo há uma sensação de perda e ciúmes e a nora passa logo a ser a vítima da ira da mãe do rapaz. O problema começa quase sempre logo no primeiro encontro, até porque há um preconceito dos dois. Por um lado, sogra é uma palavra que intimida. Do outro lado, conhecer a mulher que a vai substituir, é desesperante. Dizia uma mulher nas redes sociais: “Minha sogra não entende que o filho dela casou … que tem filhos … que cresceu … e que já é pai de família” …

“Um homem conheceu uma mulher maravilhosa e ficou noivo. Nesse dia combinou um jantar com a mãe para lhe apresentar a noiva. Ora, quando chegou a casa dela levava 3 mulheres, uma loura, uma ruiva e uma morena. A mãe dele perguntou-lhe porque é que tinha levado 3 mulheres em vez de uma só e ele respondeu que era para ver se ela conseguia adivinhar qual era a sua futura nora. A mãe olhou as três mulheres minuciosamente e respondeu: “É a ruiva”. “Como acertaste logo à primeira”, perguntou-lhe o filho. E ela retorquiu: “Porque não posso com ela” …

Adão e Eva foram o casal com mais sorte no mundo, pois nenhum deles tinha sogra. E quando perguntaram a Lenine qual deveria ser o castigo máximo para a bigamia, respondeu: “Duas sogras”.                  

O drama com as sogras acontece em todo o mundo. Na Rússia, onde os jovens casais vivem com os pais por falta de casas, criou-se uma cultura forte de ódio à sogra. Na Espanha existe uma doença que se diz ser causada pelas sogras. Na capital da Índia existe uma ala das prisões especificamente para sogras por exigirem dotes excessivos às noras e romper casamentos. Na Espanha e Itália, uma sogra pode ser processada por prejuízos ou arruinar o casamento. Alguém descobriu uma excelente forma de resolver o problema da sogra e de mantê-la à distância. Tão simples quanto isto: “Basta conseguires convencer a tua sogra a andar quinze quilómetros por dia. Ao fim de uma semana apenas, ela estará a mais de cem quilómetros de distância”.

É verdade que ser sogra pode ser muito difícil, pois habitualmente as noras têm um vínculo forte com as mães. É com elas que discutem e trocam impressões com grande pormenor sobre as mais pequenas coisas e é normal que uma rapariga confie mais na própria mãe do que na sogra. Isto pode provocar ciúmes na mãe do parceiro e gerar que esta comece a especular: “Ela trata-o bem?”, “Ele está a comer aquilo de que gosta?” ou “A casa está limpa e arrumada como ele quer”? Ora, como os filhos raramente falam com as mães sobre isso, elas sentem-se excluídas e resistem, forçando a sua presença que vai acabar por não ser bem aceite pela nora. E “temos o caldo entornado” se ela persistir. 

Há alguns anos uma mulher disse-me uma frase que não conhecia: “A minha sogra e eu fomos felizes durante vinte e sete anos. Mas então, conhecemo-nos”. E nessas palavras transmitiu todo o mal-estar que existia entre ambas a partir do momento em que casou com o filho dela, tendo-lhe estabelecido limites para evitar chantagem emocional sobre o marido como “depois de tudo o que fiz por ti” ou “tu já não te ralas comigo” e outras.

Para nós homens as queixas das sogras são mais humorísticas do que relativas a um problema real. Daí histórias como esta: “A minha sogra apareceu-me hoje de manhã. Quando eu fui à porta, ela perguntou-me: – Posso ficar aqui uns dias? – Claro que pode”, repliquei e fechei-lhe a porta”. 

Para o bem e para o mal, a sogra é a mãe da ou do companheiro/a de vida, um membro de pleno direito da família, uma peça importante para a harmonia do casal. Se ela “desafinar” e não estiver em sintonia, pode estragar a “orquestra familiar” e acabar por fazer com que cada um “toque para o seu lado”. Ora, no tempo em que já não é nada fácil conseguir obter um “dueto” em sintonia harmoniosa, uma ajuda que só vem atrapalhar é perfeitamente dispensável. E então é caso para cantar: “Eu gosto muito da minha sogra, mas quero vê-la bem longe de mim” …

A arte de dar puns, traques ou peidos

Volto a debruçar-me sobre um tema que, quando aqui o abordei, fez com que um amigo me aconselhasse a não escrever mais sobre este e outros assuntos “malcheirosos”, pois não “ficava bem” para a minha condição social. Ora, pelo contrário, acho que os muitos milhares de anos da suposta evolução humana não evitaram que o ser humano continue a ter uma relação de grande pudor  com a sua “flatulência” natural, conhecida como “pum” ou “traque” e vulgarmente por peido, fazendo com que o ato de peidar pareça estar condenado a ser para sempre algo secreto, feito às escondidas, vergonhoso e chocante. É curioso que quando uma criança dá um “pum”, toda a família se ri e acha divertido. Daí que ela se exibe perante os pais, tias e visitas, por ter recebido estímulos positivos aos seus “disparos” naturais. Só não sabe o rebento que, à medida que crescer, o que antes era divertido torna-se escabroso, de mau gosto e condenado socialmente. Vejam lá que, só pelo facto de eu falar neste assunto e de usar a palavra peido, vou ferir a sensibilidade de algumas pessoas como aconteceu com o meu amigo. Mas percebo o pudor, fruto do condicionamento social!                A flatulência tem gerado piadas, folclore, etiqueta e até tem mesmo sido proibida por lei, mas poucos estudos têm sido feitos sobre ela. Hipócrates considerou que ter muitos gases é mau e recomendava que devem ser libertados e a medicina moderna concorda notando que a retenção é um dos principais fatores da doença diverticular, o que só dá razão de ser ao “alívio” que cada pessoa sente nas cerca de catorze vezes por dia em que os liberta. Entre os que se dedicaram a escrever com humor sobre o caso, temos Geoffrey Chaucer, Benjamin Franklin e Mark Twain. E até Aristófanes. Os romanos tinham uma lei que proibia soltar gases em locais públicos, lei que foi suspensa no reinado de Claudius, o mais flatulento dos imperadores. Em Chagga, na Tanzânia, a punição para soltar gases é menos severa, mas vai dar pano para mangas às feministas: Se um marido se peidar, sua esposa tem de fingir que foi ela e de se submeter à censura. Se não cumprir a sua obrigação de esposa, tem de pagar três barris de cerveja. Coitada da Luísa se esta lei vigorasse em Portugal …                                                 No livro a “Arte de dar peidos”, Pierre T. N. Hurtaut para quem peidar era uma arte e o peido bem solto uma arma social, leva o assunto às últimas consequências pois bem lá no fundo quer recordar-nos que, por baixo das rendas e perfumes, nós também temos vísceras como qualquer outro animal e não devemos envergonhar-nos daquilo que somos, mas, pelo contrário, encarar isso com bom humor, até porque, afirma ele, “o peido é uma necessidade da natureza, uma condição de boa saúde que pode e deve ser assumida como uma fonte de prazer, alívio e até de arte, pois dar peidos não custa, custa é saber dá-los”. Hurtaut cita muitos autores clássicos como Aristófanes, Horácio e Cícero entre muitos outros, mas também pensadores atuais para nos lembrar que “um bom peido ou uma sucessão deles, pode ser uma fonte de brincadeira e de prazer, mas também uma arma de guerra ou uma declaração de independência. Além de que “peido dado na altura certo, poderá virar a situação a nosso favor”.                                                                                                                    A “Arte de dar peidos” é uma ocasião rara para aprofundar o assunto sobre o qual muito pouca gente se tem debruçado, ao contrário de Hurtaut que a esgota em todos os aspetos. E se é verdade que o livro foi escrito contra os sisudos, os preconceituosos e os hipócritas, já para não falar nos que têm prisão de ventre ou diarreia mental, a sua utilidade é inquestionável. Diz que, “o que cheira verdadeiramente mal é o preconceito e a incapacidade de rirmos de nós próprios, das nossas debilidades”. Ou seja, “o que o peido tem de dramático é vir lembrar-nos que somos imperfeitos e mortais. Que algo cheira mal, mas muito mal dentro de nós mesmo ainda antes de morrermos e contra isso só há um remédio: rir, mas rir com arte”.                            Afinal, vejam só, parte dos gases é formada pelo ar que engolimos. Ou seja, se falas como um locutor de futebol em rádio FM, comes como o lobo preso ou vives com o nariz entupido, tens chances de peidares mais, além das reações químicas que existem dentro de nós e ajudam essa coisa sem forma que, se entrou, tem de sair. Percebo que a culpa pelo peido ser mal visto é das castrações por vivermos em sociedade. Assim, peidar torna-se condenável, como assassinar. Mal se peide e seja ouvido, verá milhares de olhos acusadores. Por isso, não é para admirar que se finja tanto em sociedade.                                                       O que determina o som do peido é a velocidade e o maior ou menor aperto do canal de saída. Daí o som poder dizer sobre os hábitos de cada um. E nada de fazer muita força, porque uma coisa pode seguir-se à outra. E quanto tempo se tem para fugir dum peido antes que ele chegue ao nariz? Depende! Claro que há pessoas que dizem nunca se peidar. Ora, se está vivo, peida-se, seja homem ou mulher. Nalguns casos, mesmo depois de morto. E não existe hora certa para o escape funcionar, mas é mais provável de manhã, na que é conhecida por “trovoada matinal”, ouvida em toda a casa. E, já de fato e gravata na empresa, segura-se para não os soltar, com medo que feda, que vá ser o tema das piadas ou até de perder o emprego. Mas se pensa que um peido retido é um peido perdido, engana-se, pois ele volta a reentrar, dissolve-se e solta-se quando sentir a passagem livre. Você nunca o perde, só o adia. Mas não se preocupe porque ainda não há peidos às cores que denunciem o autor, embora alguns participem no estranho “ritual incendiário” masculino de peidar e acender o fósforo para ver se pega fogo, mas um intestino cheio de metano pode ser fatal.                                               Já agora, mas não menos importante, o arroto não é um peido que subiu de elevador. São coisas bem diferentes.                                                        O francês J. Pujol ficou famoso pela sua arte e proezas peidescas, pois tinha a capacidade de sugar o ar para depois o libertar e apagar uma vela a 30 cms. Imitava peidos diversos, de uma sogra, de noiva antes e depois da noite de núpcias, roupa a ser rasgada, disparo do canhão e uma trovoada. Com o reto conseguia fumar um cigarro, tocar flauta, imitar galos, cachorros, corujas, patos, porcos, violinos, trombones e rãs.  A performance mais aplaudida era tocar “A Marselhesa”. Penso que, se existissem mais “músicos” como ele, poderiam ter feito uma orquestra sinfónica sem instrumentos, mas capazes de tudo, embora tivessem de ficar de “rabo para o ar”, talvez de “cu ao léu” para que o som saísse nítido e cristalino. Esta habilidade levou um cientista a sonhar se não seria possível também usar o reto como instrumento de fala – afinal só faltava o aparelho fonador pois o resto já lá estava: O fole para o ar e as pregas para criar a vibração. Mas é melhor não!                                           Não sendo “assassino” para estrangular os peidos nem altruísta para reivindicar os dos outros; não sendo covarde que, mal os solta, foge do mau cheiro nem fiscal que cheira o cu de toda a gente e nem infeliz por pensar que vão sair gases e sai “coisa sólida”, sinto o preconceito da sociedade sobre uma exigência do nosso organismo e da nossa condição animal. Daí ela aceitar mais as pessoas desastradas do que quem solta gases. Mas é caso para se perguntar: Quem nunca soltou um peido em público, que levante a mão? Como dizia o cartaz: “Não reprima seus sentimentos. Peide feliz”. E “não segure um peido, pois faz mal à saúde”. A verdade é que toda a humanidade está ligada pelo peido, sem olhar a gênero, etnia ou estrato social. É a manifestação humana mais universal, a prova que desmascara as peneiras e desfaz a cagança. E só o riso é a arma perfeita contra o preconceito, faça-se ele acompanhar ou não da música do traseiro.                                                                    Hurtaut, o poeta dos gases e sábio da flatulência disse: “É vergonhoso que depois de tantos anos a dar peidos ainda não saibas como o fazes e como fazer, pois, há quem peide com classe e há quem se atrapalhe todo. É que dar peidos é uma arte”. Aliás, um dos vários capítulos da mais difícil e exigente das artes: A Arte de Viver.