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O Rio da minha vida

Tal como a escola, o Rio Sousa foi para mim um local de aprendizagem, de entretenimento e lazer e, por isso, tenho para com ele uma relação sentimental, porque é o Rio da minha juventude.

Vivi desde criança em comunhão com a natureza e a educação e a liberdade que os meus pais me deram contribuíram decisivamente para que isso acontecesse. Após a escola, a aldeia era o meu mundo, e posso dizer com toda a propriedade que lhe conhecia todos os cantos. E então nos arredores da casa dos meus pais, não havia pássaro que fizesse ninho sem que eu soubesse, fruteira que não controlasse, esconderijo que não explorasse. E o Rio Sousa fazia parte desse mundo.

Desde cedo fui um cliente assíduo do Amial , a seguir aos Moinhos, aquele lugar aprazível rodeado de amieiros e com um espaço “relvado” junto ao rio, bom para tomar banho, apanhar sol ou fazer um piquenique. Ali estive algumas vezes com os meus pais e muitas mais com miúdos da minha idade, para onde nos escapávamos nos dias quentes de verão.

Foi neste rio que aprendi a nadar o pouco que sei hoje, imitando os outros, o suficiente para manter a cabeça fora da água e não ir ao fundo. Também foi no Amial que comecei por dar mergulhos no “fojo do sr. Mário” e explorar os buracos entre as pedras do rio à procura de barbos ou escalos, dado que as trutas pareciam muito mais difíceis de apanhar, o que viria a descobrir não ser verdade. Se tinha calor, refrescava-me na água do rio, se tinha sede bebia água do rio, e se me apetecia, apanhava sol deitado na erva. E os piqueniques, eram um prazer só mensurável à escala de valores desse tempo…

As margens eram limpas, a água sem qualquer poluição, o peixe abundante e o prazer imenso. Pesquei à cana, com rede e à mão, sem que o senhor Moreira guarda-rios me chegasse a apanhar. Bons tempos.

A pescaria mais marcante foi feita com o meu tio Fernando, um homem para quem a pesca era uma paixão. Numa manhã geada de Janeiro, fui com ele para um “fojo” – sítio fundo do rio – abaixo da ponte da Amieira e um pouco antes da Quinta dos Ingleses. O frio era muito mas o meu tio, apoiado num amieiro, atirou a rede para o meio do rio e, com uma vara comprida, conseguiu estendê-la em semicírculo, com princípio e fim na margem onde estávamos, numa extensão de dez a doze metros. Posicionada a rede, a partir da margem e com a mesma vara, bateu os buracos entre as pedras, fazendo barulho para empurrar os peixes de encontro a ela. As boias começaram a agitar-se fortemente, nalguns casos com violência, e percebemos que o peixe ia ser muito e bom. Chegado o momento de recolher a rede, foi-a puxando com a tal vara mas em dada altura ficou presa a qualquer coisa e, por mais que trabalhasse com a vara, não conseguiu libertá-la. Então, naquela manhã gelada de Janeiro, vejo o meu tio tirar a roupa, entrar no rio completamente nu e com a água fria até ao pescoço, soltar a rede e arrastá-la para a margem carregada de peixe. Que grande pescaria, e que coragem, que ainda hoje me faz… arrepiar.

O tempo passou, a vida profissional afastou-me do “meu” rio e deixei mesmo de usufruir das suas benesses. Ao longo dos tempos o meu contacto com ele passou a ser através de notícias, lidas ou ouvidas, a propósito da poluição que o ia afetando de variadíssimas formas, das consequências em peixes mortos, água colorida e inquinada, algumas vezes um rio de “trampa”.

Foi o preço que teve de pagar pela nossa industrialização em nome do progresso, desse progresso sem sustentabilidade de que nós, e muito mais os que nos precederem, teremos uma fatura muito pesada para pagar. Ouço dizer que continua poluído, sem peixe, mas às vezes penso que, se tiver, provavelmente estará nas mesmas condições em que estão as orcas que os neozelandeses tentam salvar e que já são consideradas “perigosos depósitos ambulantes de resíduos tóxicos”.

Mas o Rio Sousa continua aí, no mesmo leito, parte integrante do nosso património natural e do ecossistema a que pertencemos e que teimamos em destruir, sem nos darmos conta de que estamos a fazer uma guerra contra nós próprios. Saibamos respeitá-lo, preservá-lo e cuidar dele, para o podermos fazer chegar às próximas gerações como o recebemos num passado não muito distante.

Cães e outros animais… racionais!

“Olhei para os animais abandonados… os renegados da sociedade humana. Vi nos seus olhos amor e esperança, medo e horror, tristeza e a certeza de terem sido traídos. – Deus, isto é horrível. Porque não fazes nada Senhor? E Deus respondeu: – Eu fiz. Criei-te a ti”.

Não sinto vergonha ao dizer que me comovi quando li este pequeno texto, de uma riqueza extraordinária, uma chamada à consciência de todos nós… animais, ditos… racionais.

Quanto mais leio sobre as características e a índole dos animais e as comparo com os traços e comportamentos dos homens, mais humilhante é o resultado para nós. A vida é tão preciosa para um animal irracional como é para um animal… racional. Um e outro procuram ser felizes, temem a dor e o sofrimento, querem viver e não morrer.

Dizia J. J. Rousseau que “os animais devem participar do direito natural e o homem é responsável no cumprimento de alguns deles, especificamente um tem o direito de não ser maltratado pelo outro”. O abandono e os maus tratos de animais, especialmente os domésticos cão e gato, são um problema cada vez maior, sobretudo nos grandes centros urbanos do ocidente, onde o avanço da civilização devia ser mais… civilizado.

As modas que passam e as dificuldades económicas dizem-se ser as principais razões do abandono de animais mas, inquéritos realizados em relação a cães, apontam como principais razões por ordem de importância, “porque sujam a casa” e porque “destroem o exterior da casa”.

Chegadas as férias, os animais são um estorvo e por isso são abandonados para se poder viajar ou, pior ainda, amarram-se em casa sem quantidade de água e alimento suficientes para os dias de ausência.

Quem o faz não deveria ter o direito… que lhe fizessem o mesmo? Se possível com açaime, para não morder os móveis? Quanto a maus tratos os casos são imensos, alguns de uma crueldade intolerável. E quando se permite e ensinam crianças a serem cruéis com os animais, alimentando-se o prazer com a miséria dos seus semelhantes, abre-se a porta a futuros delinquentes com tendências para o caminho do crime.

Os animais não são propriedade do homem para este disporem deles como se de coisas se tratassem, meros elementos decorativos de uma qualquer moda passageira de que se descartam facilmente quando passa, lixo vivo jogado fora como subproduto do homem, sujeitos ao bom ou mau trato, a carícias ou pancada, afagos ou tortura, conforme o humor, a disposição ou a lua do dono, porque o seu clube perdeu, zangou-se com alguém ou bebeu uns copos a mais e porque acha que lhe foi conferida superioridade sobre o animal. Aliás, a nossa superioridade sobre os animais está na capacidade de nos tornarmos… burros.

Admiro os protetores de animais, pessoas que, individual ou coletivamente, colocam amor no que fazem porque querem ajudar a melhorar o mundo em que vivemos e isso lhes basta para se sentirem realizados. E é triste que sobre eles se lance frequentemente essa imagem preconceituosa de se tratarem de velhos, solitários, sem família nem vida particular e desequilibrados. É mais uma forma de maus tratos, desta vez ao protetor e cuidador. Mas afinal a que propósito vem isto?

Ah, já ia perdendo o fio à meada pois o que queria dizer é que ao fim de mais de vinte anos consegui reunir o consenso familiar para voltar a ter um cão em casa, o que não foi fácil.

O primeiro que tive foi-me oferecido por familiares que moram perto de Seia, a quando do nascimento do meu filho mais velho. E, como é natural naquela região, foi um “Serra da Estrela”. A vida quase nómada que eu tinha na altura não me permitiu usufruir plenamente do prazer de ter um cão, o primeiro dos animais domesticados há alguns milénios atrás.

Também não fui eu que cuidei dele ao longo dos doze anos de vida, num tempo em que não existia a comodidade das rações de hoje e, por isso mesmo e para não vir a sofrer novo desgosto, a minha mulher recusou-se a aceitar outro para ocupar o lugar do Dick.

Tomada a decisão de ter novamente um cão, havia que escolher a raça do novo membro da família em função dos nossos objetivos. Ponderei diversas raças, vi sites, estudei criadores, mas um dia a Teresa, que trabalha comigo há uns anos, lembrou-me, e bem, para ir ver o que havia no canil municipal.

Nunca tinha entrado num canil e foi com curiosidade que o fiz e, embora este fosse pequeno, sem grandes condições e com poucos animais, impressionou-me o olhar daqueles cães um pouco amontoados, como que pedindo “salvem-me”.

Escolhi uma cadela “Pastor Alemão” como poderia ter escolhido um “rafeiro”, sem me preocupar em saber do seu “pedigree” ou de onde viera, porque não era isso que me interessava nem a razão porque estava ali.

E estou feliz. Estou feliz por me ter dirigido ao canil municipal e não ir atrás de um criador, e recomendo que esta deve ser sempre a primeira opção, com a vantagem de poder-se alargar a escolha a muitos outros canis e a custo zero. E há lá tantos olhares de desespero, à espera de alguém que os adote…

Estou feliz por ter salvo um animal e poder dar-lhe um lar. E não é todos os dias que o consigo fazer. Estou feliz porque esta opção, para além de gratificante, poupou-me tempo e dinheiro. Estou feliz porque estou a recuperar um animal traumatizado, cheio de medos, penso que por maus tratos. Estou feliz porque voltei a encontrar o entusiasmo de criança. Estou feliz porque tenho alguém que não se importa se sou rico ou pobre, gordo ou magro, se vivo em mansão ou em barraca, nem qual a cor da minha pele, o meu clube ou a minha religião. Só quer comida e água limpa, cuidados, carinho e respeito para poder entregar-se.

E, em contrapartida, não difama ninguém, não se importa com aparências, não me trai e está sempre disposto a fazer-me companhia. Saiba eu corresponder a esta entrega. Aceito que todos têm o direito de ter um ou vários animais, mas só o direito. Porque se não podem cuidar deles, se não têm condições para os acolher, se não souberem respeitá-los, não podem ter animais ao seu cuidado.

Deveria existir um serviço público com equipas de avaliação, a exemplo das que existem na Segurança Social para a adoção de humanos, que avaliassem previamente a capacidade do candidato à adoção de animais. Evitar-se-iam muitos casos de abandono e maus tratos.

Atenção que os cães não são seres humanos, mas são seres… canídeos. Uns e outros têm direitos, a maioria comuns, mas cabe ao homem cuidar do seu cão, de lhe dar o que não se compra em lado nenhum: Tempo e atenção. E em contrapartida receberá dele o que nunca receberá de nenhum ser humano em lealdade, fidelidade, amizade, dedicação e disponibilidade, porque a sua alma não conhece nem malícia nem falsidade.

Diz-se que “o cão é o melhor amigo do homem”. Se os cães falassem, em muitos casos perguntariam: – Que raio de amigo eu arranjei”. Será que a amizade entre amigos não deve ser recíproca? Parece que não porque “no inferno dos animais, são os homens os seus demónios”.

É o cão que nos acompanha, sempre com a mesma alegria natural, debaixo de chuva torrencial ou sob forte calor, nos guarda e protege, sempre mas sempre, o amigo mais fiel. Podemos ser traídos por conhecidos, amigos ou até filhos, mas não se é traído pelo nosso cão. São inúmeros os casos de dedicação, de fidelidade, de ajuda e de coragem de tantos cães, numa manifestação de lealdade e fidelidade infinitas.

Mas não resisto a destacar o Hachiko que vivia em Tóquio com o seu dono, o professor Ueno. Todos os dias o acompanhava à estação de comboios e ia esperar, até o professor morrer na Universidade. O cão foi doado a outra família, mas voltou à estação ao longo de quase dez anos diariamente, até morrer, esperando em vão a chegada do professor. E o cão escocês Bobby, que guardou o túmulo do seu dono durante os catorze anos que lhe sobreviveu… E somos nós os seres superiores, os donos dos sentimentos… A propósito de um certo cão, dizia-me um amigo: “Só lhe falta falar”. Para quê, se “as mais lindas palavras de amor são ditas no silêncio de um olhar”.

Televisão, o comando é meu …

Os primeiros meios de comunicação com que tomei contacto foram o jornal “O Primeiro de Janeiro”, que o meu pai levava para casa, e a telefonia, através de um rádio enorme que estava em cima da mesinha de cabeceira do quarto dos meus pais.

No jornal via as fotografias e, depois de aprender a ler, os resultados da página do desporto, enquanto no rádio só ouvia algumas vezes o relato dos jogos do meu clube, pois preferia a vida ao ar livre e as brincadeiras de rua. Mas a rádio deixou-me imagens marcantes que guardo na memória, entre as quais os dias 13 de Maio quando a minha mãe punha o rádio à janela voltado para fora, para os vizinhos reunidos em frente da nossa casa ouvirem e participarem nas celebrações da peregrinação a Fátima, rezando ou cantando.

Era nesse momento que eu e o meu irmão nos escapávamos por detrás da casa da minha avó, para “atacar” a cerejeira da senhora Emilinha “Séria”, ocupada em seu fervor religioso. Só agora, olhando o Céu onde espero que esteja, lhe peço que me perdoe.

Outra imagem é a do meu tio Fernando sentado na cama a ouvir o relato dos jogos do seu Benfica, uma autêntica doença. À medida que o jogo decorria e o seu clube atacava, todo o seu corpo tremia em convulsões, crescentes com a aproximação da bola à baliza do adversário ou mais calmas se não desse em nada. Se fosse golo, terminavam num grito guerreiro profundo acompanhado de um salto a condizer. Numa das vezes… a cama “morreu”.

Era no rádio que a minha mãe ouvia os folhetins do “Teatro Tide” e mais tarde o “Simplesmente Maria”, rádio novelas que faziam chorar as rádio ouvintes e que foram as percursoras das atuais telenovelas.

Um dia chegou a televisão, a preto e branco, e o meu pai levou-nos à vila para vermos a primeira transmissão no Café Avenida, pois o senhor Joaquim tinha comprado uma. E foi neste café que eu e o meu irmão continuamos a ver TV, até sermos surpreendidos em casa com uma grande caixa onde vinha um aparelho igualmente grande, e podermos usufruir em privado desse milagre da tecnologia.

Com a chegada da televisão acabaram-se as cavaqueiras com a vizinhança logo após o jantar, à porta de casa. Logo aí, perdeu-se alguma coisa.

A televisão passou a fazer parte da vida de todos nós, num crescendo constante à medida que alargava os horários de transmissão, melhorava a qualidade dos aparelhos, da imagem e dos programas, agarrando-nos e criando habituações, senão mesmo dependências.

E neste processo deixamo-nos atrair como moscas ao mel, sem cuidarmos em dosear a quantidade, selecionar a qualidade, limitar horários ou travar gastos. Gradualmente espalharam-se televisões por toda a casa.

Começou-se pela sala, alargou-se à cozinha e mais tarde aos quartos e a outras dependências da casa. De tal forma que já vi uma numa casa de banho, mesmo em frente da sanita. E pela bizarria, apeteceu-me dizer ao proprietário que deveria ter montado um sensor para, quando ali estivesse a ver um jogo do seu clube, nos momentos mais emotivos como o golo, se se levantasse para celebrar, aparecesse no ecrã uma frase do tipo “cuidado que está a c… fazer fora da sanita”.

A televisão passou a comandar as nossas vidas, o nosso tempo, “educando-nos”, “instruindo-nos”, “moldando-nos os gostos e preferências”, vendendo-nos tudo desde perfumes a presidentes, contando as “suas verdades”, fazendo-nos acreditar.

Eu também espalhei televisões pelos quartos até chegar à conclusão óbvia de que uma televisão, se possível fora da área das refeições, era mais que suficiente. Ao colocarmos televisão nos quartos proporcionamos aos nossos filhos as condições para fazerem noitadas, vendo o que não lhes é recomendado, acordados quando deviam estar a dormir, enquanto nós ressonamos tranquilamente, alheados do que se passa no quarto ao lado.

E esta “santa paz” continuou quando chegaram os computadores e a internet que, com a interatividade, mais prenderam os miúdos ao monitor e os levaram a prevaricar, noite após noite, vivendo de noite e dormindo de dia, talvez na espectativa de tirar o curso de… morcego.

A televisão ligada na zona e à hora das refeições acabou com o diálogo na família, chegando mesmo a ser motivo para brigas, sendo nós pais quem as provocamos geralmente ao exercer a autoridade paterna para ver o jogo de futebol ou a telenovela, deixando as preferências dos filhos para segundo plano.

A TV e o computador são um bem, se usados com critério e regras, mas podem virar problema se não forem doseados em função do utilizador. Que moral temos para exigir dos políticos em geral e dos governantes em particular, que regulem os mercados, o sistema bancário, etc., quando não somos capazes de dar o exemplo e fazer a regulação do que se passa em nossas casas no simples uso da TV ou do computador, que tanta importância têm na vida dos nossos filhos? Será tão difícil impor regras e fazê-las cumprir ou o nosso comodismo sobrepõe-se à nossa responsabilidade?

A educação, tal como a caridade, para ser bem feita deve começar por nós. Mas antes de querermos mudar os outros temos de nos mudar a nós próprios. É que, afinal, importa saber quem é que em casa diz: “O comando é meu”.

Procura-se: Trabalho ou emprego?

É um lugar comum dizer que vivemos tempos de crise, difíceis para todos, que nos obrigam a considerar o emprego como um bem raro, seja ele bom ou ruim. Aliás, há os que defendem mesmo que não existe trabalho ruim, porque ruim é ter que trabalhar. Também, em contrapartida, há os que afirmam que não é o trabalho que acaba com a gente, mas sim as preocupações.

Considero o desemprego um dos maiores flagelos da sociedade e, por mais exercício mental que faça, não consigo dimensionar, porque o não vivi, o drama de alguém que quer trabalhar, que precisa de o fazer para se sustentar a si e à família, que se sujeita ao que houver e só encontra respostas de “não”, “não precisamos”, “é muito velho para o lugar”, “não tem experiência” e sei lá bem mais o quê. Um homem desejoso de trabalhar e que não consegue encontrar trabalho, é dos espetáculos mais tristes que a desigualdade nos mostra à face da terra. E as consequências são conhecidas: Quebra no rendimento familiar, depressões, baixa na autoestima e desmotivação para procurar emprego. Aliás, um bom número de desempregados desmoraliza depois de várias tentativas falhadas.

Para um jovem que andou quinze, dezasseis ou mais anos a estudar, alimentando o sonho de um bom futuro, que às vezes para além da licenciatura até tira um mestrado, ver-se confrontado com a impossibilidade de encontrar trabalho na área a que se dedicou, no nível a que acha ter direito, para depois ter de concorrer a um serviço indiferenciado, sem exigência de qualquer instrução ou qualificação profissional, e onde, por paradoxo, ainda poderá ser penalizado por excesso de habilitações, é de uma frustração inimaginável.

Admiro e merecem-me todo o respeito, todos esses jovens que, não tendo saída com os seus cursos, se agarram com vontade, sem quebra de ânimo e com empenho, a qualquer trabalho que surja, por mais simples que seja.

Diariamente sou confrontado com uma verdadeira legião de licenciados de diversas áreas, à procura de um simples emprego, a maioria aceitando seja o que for, pois o que procuram é trabalhar. E na história de cada um está um drama a precisar de uma solução, uma frustração a precisar de uma saída, uma necessidade básica à espera de uma mão amiga.

Esta é efetivamente a geração mais instruída, mas também não deixa de ser a mais desprotegida e com menos emprego de sempre, a quem foram criadas espectativas elevadas mas que foram remetidas, em grande número, para o caixote das desilusões. E então todos aqueles que perderam o emprego em idade mais ou menos avançada, que são considerados novos para se reformarem e velhos para trabalhar? Quantos dramas para quem tinha a sua vida organizada e planificada e de um dia para o outro viu ruir o seu mundo, as suas certezas, a sua segurança, o seu bem estar? Quanto sofrimento por esta situação, em muitos casos silencioso e escondido, envergonhado por nunca se ter imaginado assim?

Rezo para que não falte o ânimo a todos os que sentem na pele esse flagelo destes tempos que é o desemprego, para que consigam levantar-se e seguir em frente, recomeçar com mais energia, voltar a ter vida própria.

Percebo ainda muito bem o sentimento dos que partem para outras paragens porque no seu país não têm oportunidade de trabalhar, de serem úteis, de dar o seu contributo. Demos-lhe ferramentas de trabalho especiais, mas que só servirão para produzir riqueza para outros.

Tudo isto vem a propósito do emprego e do seu valor nos dias de hoje, para justificar o absurdo do que relato a seguir. Há algum tempo atrás na Instituição a que estou ligado, tivemos de proceder ao recrutamento de duas funcionárias para tratar de idosos. Esse recrutamento processou-se da forma habitual, com entrevistas a cerca de vinte candidatas e a admissão das duas melhor pontuadas.

Até aqui, tudo normal. As duas novas funcionárias começaram a trabalhar numa segunda feira mas no dia seguinte já não apareceram ao serviço, nem tiveram educação e respeito para se justificarem. Chamamos de imediato as duas seguintes que começaram a trabalhar na quarta feira mas, ao outro dia, já só compareceu uma.

Em resumo, para ocupar dois lugares, repito, dois lugares, tivemos de chamar seis pessoas que diziam precisar de emprego. Provavelmente era isso, diziam precisar de emprego, não de trabalho. Ou então, ao ouvirem que “o trabalho duro nunca matou ninguém”, interrogaram-se: “Para quê arriscar”? Por este e outros absurdos do género com que me tenho deparado nestes tempos tão difíceis, onde ainda há quem procure emprego e não trabalho, quem procure salário e não responsabilidades, quem procure direitos e não deveres, parece-me ser importante que aos jovens, para além da instrução, se lhes ensine algo muito precioso: Hábitos de trabalho. Porque, como é comum dizer-se, “o único lugar conhecido onde o Sucesso vem antes do Trabalho é no … Dicionário”.

Os acumuladores de lixo

Nasci em plena Segunda Guerra Mundial e por ela fiquei marcado, não pela guerra em si, de que não tenho memória alguma, mas pela falta de todo o tipo de bens, pelo racionamento, por um tempo de nada haver e tudo ter valor por mais pequeno que fosse. Por isso fiquei com o hábito de apanhar e guardar tudo, desde um prego a um pedaço de madeira, porque me poderia ser útil amanhã. Diziam-me “guarda o que não presta que encontrarás o que te é preciso” e como era um tempo de haver muito pouco, todo o pouco era muito.

Com o surto industrial local, desde a FAMO, à ESTOFEX e à “KISPO” – e desculpem-me por me referir à marca e não à empresa, mas foi aquela que ficou na memória do povo – chegou a criação de emprego e a produção de riqueza, que levou à urbanização, puxando pela indústria de construção civil e de todos os sectores desta atividade e de outras, num crescendo permanente até ao final do século passado. E essa espiral ascendente de criação de riqueza rapidamente se fez acompanhar do seu irmão: O consumo.

Começou por se comprar tudo o que eram bens essenciais, a que se tinha um acesso limitado até então, mas rapidamente se estendeu a todo o tipo de bens. Comprou-se casa e carro, móveis e eletrodomésticos cada vez mais sofisticados, compraram-se máquinas fotográficas e de filmar, chegaram os telemóveis e compraram-se de todos os tipos, dos Iphones a Ipads sem preocupações com o “Ai podes?”, com os bancos a empurrarem o dinheiro pela porta fora oferecendo crédito barato, com publicidade como “tenha tudo com que sempre sonhou”, “vá de férias e pague depois”, etc., etc.. E até veio a CEE para nos “dar” dinheiro a rodos, que alimentou o consumo de produtos vendidos pelos nossos “dadores”, fazendo com que o dinheiro voltasse ao bolso de onde saiu.

Os comércios multiplicaram-se a um ritmo alucinante, seguindo-se-lhes as cadeias de supermercados que nos acabaram de arrasar as bolsas com o aliciamento à compra do supérfluo. Alguém do ramo dizia-me que a sua especialidade era “vender o que as pessoas não precisam”.

O desenvolvimento industrial levou a um excesso de oferta e esta a uma massificação do consumo, alimentada pela comunicação que, através da coação psicológica realizada pela publicidade, veio desenvolver a cultura de massas, ao que foi chamado “industrialização do espírito” e a “colonização da alma”, atirando-nos rapidamente para uma típica sociedade de consumo em substituição da sociedade de subsistência.

Passou a consumir-se tudo o que está na moda apenas como forma de integração social, numa estratégia da indústria que, mais do que na produção de mercadorias, investiu no aumento da procura, isto é, em produzir consumidores.

Cada um de nós passou a ser “capital humano”, sendo promovido a trabalhador e a consumidor e, sem percebermos, procedemos como peças de uma máquina (a sociedade de consumo), cujo funcionamento não compreendemos. A partir de certa altura já não consumimos coisas, somente “marcas”, já não nos vendem produtos, vendem-nos “estilos de vida” de acordo com os “critérios do mercado”. Nesta sociedade, passamos a ser consumidores sem vontade própria, sujeitos ao prazer do consumo, escravos das estratégias do marketing agressivo e das facilidades de crédito das empresas e dos bancos.

Compramos o que precisávamos e o que não precisávamos, da roupa ao calçado, dos “palácios” às “bombas”, das viagens às prendas, das enciclopédias às colchas de linho a prestações. Até compramos os nossos filhos ao dar-lhes tudo o que pediam só para não nos chatearem porque não tínhamos tempo para lhes dar.

E nós compramos, compramos, compramos, embora para isso tivemos de correr mais, trabalhar mais, e pôr a mulher e até os filhos a correr também mais, para satisfazer “falsas necessidades” que o marketing foi inventando e reinventando, fazendo de nós escravos sem correntes.

Muitas vezes o meu amigo Agostinho me perguntava: – “Esta gente vai toda a correr para onde”? E nesse comprar, comprar, fomos enchendo a casa dos chamados bens, construímos anexos que também enchemos, e até ocupamos quintal ou jardim. E vem todo este rebobinar do nosso percurso comum porque cheguei à conclusão que teria muito melhor qualidade de vida se me desfizesse de 80% da tralha que tenho em casa.

Aliviado deste “excesso de peso”, teria a minha viagem mais simplificada, precisando de menos casa e menos anexos, em conclusão, viveria melhor. Olhando para trás, friamente, dou-me conta de que após a industrialização, fomos “formatados” para consumir. E ao massificar o consumo, perdemo-nos como indivíduos. E o que nos ficou deste consumismo?

Uma quantidade de bugigangas espalhadas por cima dos móveis ou, já por falta de espaço, encafuadas em vitrines ou em caixotes, que só são um estorvo. E pergunto-me: – Que é isto? Os móveis “despromovidos”, enfiados nos anexos à espera de “reabilitação”, os eletrodomésticos encostados, as taças, centros de mesa e arranjos, os armários a rebentar com roupas ociosas por não serem utilizadas, os sapatos, as maquinetas de cozinha que serviram enquanto foram novidade, as louças nunca usadas, as bicicletas e outras maquinetas para fazer exercício físico. Toldes e guarda sois, sacos camas e tendas de campismo, coleções de livros, de porcelanas e de sei lá o quê, berbequins e outros afins, ferramentas, bidões e floreiras, consolas e telemóveis em uso e desuso, etc., etc., etc..

Afinal, além de um típico “carneiro” do rebanho da sociedade de consumo, tornei-me também num “ACUMULADOR DE LIXO”.

O consumismo conduziu-me até aqui e ao olhar para trás, para aquele miúdo que só tinha dois pares de calças remendadas, penso que poderia viver várias décadas mais, sem precisar de comprar roupa, se aproveitasse a que tenho tão bem quanto devia. Mas a sociedade que criamos vive deste ciclo vicioso: As empresas fabricam produtos, empregando pessoas, a quem pagam salários, para lhe comprarem os produtos.

Conclusão: A empresa fabrica produtos e consumidores. Com a mecanização, a automatização e a robotização produziu-se mais e mais com menos mão de obra, em excesso, levando-nos a consumir mais e, consequentemente, a trazer mais lixo para casa, com a agravante de passarmos a ser dispensáveis, melhor, descartáveis, afinal, também lixo.

Até sempre Sr. Dias

Não tenho inclinação para a história porque não tive nenhum professor que me despertasse o interesse pela matéria, antes pelo contrário, a forma como esta disciplina me foi ensinada era, em gíria estudantil, uma “seca”.

A minha aprendizagem desta matéria teria sido muito melhor se me tivesse sido incutida motivação, que não aconteceu, e se tivesse sido valorizada a compreensão em detrimento da memorização. Não sendo matéria da minha especialidade, já há uns meses que me propus fazer um pequeno exercício de memória no que à história diz respeito a propósito de três homens, três empresários que, em meu entender, se tornaram personalidades, ao destacarem-se e deixarem a sua marca em Lousada durante o século XX e a quem o concelho muito deve e vai continuar a dever ao longo do século XXI. Mas, um acontecimento imprevisto fez-me alterar essa intenção, levando-me a escrever hoje, somente sobre um deles.

É sempre subjetivo referir da maior ou menor importância de uma pessoa, até porque alguns são considerados grandes porque “também lhes mediram o pedestal”. No entanto falamos de quem fez obra, de factos que não podem nem devem ser esquecidos, de homens que tiveram a ver com a vida de muita gente e que por isso têm de merecer o nosso respeito e cujos nomes devem ser preservados na história de Lousada. Um empresário é alguém que exerce profissionalmente uma atividade económica organizada para a produção de bens e serviços.

Sem empresários não há empresas, sem empresas não há emprego – que tanta falta faz hoje a centenas de milhares de pessoas em Portugal – sem emprego não há criação de riqueza. Muito vilipendiados e raramente adorados, os empresários são quase sempre mal amados, tidos como um mal necessário, sujeitos à inveja e à calúnia, até porque são quase sempre considerados ricos, mesmo que o não sejam. É verdade que há bons e maus, alguns com formação e capacidade mas muito mais sem qualquer preparação para tal, e que acabam por denegrir a imagem geral do grupo.

Um empresário é um homem de ação, ação esta que não vem do pensamento mas da disposição de assumir responsabilidades. E um bom empresário é um homem que as assume. Nestas breves linhas falo de um empresário, de um homem que, por tudo o que fez, passou a ser uma das personalidades de Lousada do século passado.

E falo especialmente dele porque, hoje mesmo, último sábado de Outubro, fui surpreendido com a notícia que o Manuel Mendonça me deu: Faleceu o senhor JOSÉ DOMINGOS DE ARAÚJO DIAS, mais conhecido por senhor Dias, da ESTOFEX, e o seu funeral já se realizou ontem. E disse-me ainda que ficou muito admirado porque estiveram poucas pessoas no cemitério de Cristelos, no funeral de um homem que merecia a homenagem de muita gente de Lousada.

Fiquei triste não só pela morte do último dos três grandes empresários de Lousada do século passado – os outros foram os senhores Jaime Pinto de Moura e Hans Isler – mas também por não ter estado presente na sua última viagem neste nosso mundo. E só não estive lá, porque não soube.

É certo que para um grande número de lousadenses o nome do senhor José Dias já nada lhes diz, pois nasceram ou cresceram nas últimas três décadas, quando ele já se retirara para o Porto, e mais tarde para Gaia, onde passou a viver uma vida mais tranquila, muito em função da sua doença. Mas ainda há muita gente que com ele privou, trabalhou ou que dele usufruiu benesses, mas quero crer que não souberam da sua morte, tal como eu.

Há três tipos de pessoas: As que fazem, as que veem fazer e as que perguntam o que aconteceu. José Dias foi um daqueles que fez, e fez obra grande, tendo construído há cerca de cinquenta anos uma das maiores unidades fabris de Lousada, senão mesmo a maior de sempre: A ESTOFEX.

Um homem de grandes conhecimentos, muito viajado e conhecedor do mundo no tempo em que o mundo se resumia quase ao nosso “quintal”, era um visionário e um sonhador. Viveu a sua vida entre Portugal e o Brasil, muito beneficiando dessa dupla vivência de que soube colher o melhor dos dois mundos.

Iniciou a atividade da ESTOFEX num edifício da FAMO, mudando-se mais tarde para instalações industriais próprias por detrás desta e bem dentro da vila, com a atividade centrada no fabrico de móveis e estofos de linhas modernas, uma revolução para a época. A unidade fabril cresceu quase meteoricamente, em dimensão fabril e equipamentos dos mais modernos de então, surpreendendo o comum dos cidadãos pelo avanço tecnológico, impar na região. Deu emprego a um grande número de pessoas – “na hora da saída da fábrica, era um rio de gente” dizia-me um antigo operário – num período em que a industrialização começava a dar os primeiros passos no concelho e na região, gente essa na sua maioria sem preparação nem formação profissional, mas que rapidamente se adaptou à função.

O crescimento da empresa deu-se na década de sessenta, atingindo o auge na seguinte, mas nesta vida tudo nasce, cresce, vive e morre e o período conturbado e de crise que se seguiu à revolução de Abril e as grandes dificuldades que vivemos então, foram-lhe adversas, acabando por a levar ao encerramento. No entanto, as instalações que edificou ficaram de pé, apesar de esventradas, e anos depois viriam a ser transformadas no parque industrial que é hoje, abrigo de várias empresas industriais, comerciais e de serviços, só possível porque um homem como ele teve a coragem suficiente para arriscar tanto.

Como empresário, para além de dar emprego a muitos trabalhadores, trouxe um conceito novo: O das preocupações sociais com aqueles que trabalhavam na empresa. Era um verdadeiro lousadense e amava profundamente a sua terra onde, para além de ter construído aquela grande empresa que foi a ESTOFEX, assumiu diversas responsabilidades na comunidade, a maior das quais como presidente da assembleia municipal, cargo que exerceu com grande nível.

Sempre disponível para ajudar, deu a mão a muita gente e a várias instituições locais, patrocinando eventos e organizações, como benemérito que foi. Era um homem inteligente e de uma cultura invulgar, que viveu as últimas décadas rodeado de livros, deleitando-se com a poesia, cultivando as amizades, uma espécie rara neste mundo descartável, que acabou de partir para o canto das memórias, quase esquecido na sua Lousada querida, onde quis deixar os seus restos mortais já que há muito lhe entregara o coração.

Ainda há relativamente pouco tempo, doou à Biblioteca Municipal de Lousada um valioso espólio, que ocupa a sala com o seu nome. Pessoalmente, aqui deixo o meu preito de homenagem ao Homem, que admirei pelo que foi, pelo que fez, pelo que sonhou.

Para mim será sempre um dos três grandes Empresários de Lousada do século XX, diria mesmo, uma das Personalidades marcantes desse período, e a história local deve-lhe isso. E para que o concelho não repita a injustiça que foi feita a um outro Empresário, seria a altura própria de batizar o parque industrial de hoje, instalado na sua unidade fabril de ontem, para perpetuar o nome de JOSÉ DIAS no amanhã, porque sem ele nunca haveria parque.

Homem rico com pouco dinheiro

A riqueza produzida anualmente por um país é indicada por uma sigla: PIB – Produto Interno Bruto, e o primeiro indicador utilizado para ver a qualidade de vida desse país é o PIB per capita, isto é, o PIB a dividir pela população, o que nem sempre é fiável, sobretudo quando são poucos a terem muito e muitos a terem pouco. Igualmente é comum dizer-se que um homem é rico quando tem em abundância, muito dinheiro, valores mobiliários e imobiliários.

É o sonho de tanta gente, chegar lá, às vezes não olhando a meios para atingir os fins. Mas será?

Ao contrário do resto do mundo, o reino do Butão, um pequeno país situado junto aos Himalaias entre a China e a Índia, mede o seu progresso e riqueza por um outro índice: FIB – Felicidade Interna Bruta.

Fechados ao progresso tecnológico, sem indústria, mantêm os seus hábitos, tradições e modo de vida de geração em geração, evitando serem “contaminados” pelo desenvolvimento como o conhecemos, preocupados com a felicidade e o bem estar espiritual dos seus habitantes, votados ao isolamento e à reflexão.

Afinal quem estará certo, o reino do Butão ou o resto do mundo. A riqueza maior deverá ser avaliada pelo índice de felicidade ou por se ter mais ou menos bens? O Tio Patinhas, personagem da banda desenhada, é a figura caricatural do acumulador de riqueza em que esta é uma fonte de preocupações sendo uma delas aumentá-la permanentemente, enquanto se esquece de tirar partido dela. Ao longo da minha vida conheci gente com muito, com pouco ou com nada, numa escala de montantes tão diferenciada quanto extensa. E ainda hoje me questiono qual o mais rico com que me cruzei nesta caminhada.

O senhor Abílio do Abel era trolha de profissão e pode dizer-se que nada mais tinha para além dos filhos. Durante muitos anos, duma janela da casa dos meus pais, via-o passar rua abaixo, ao entardecer dos dias quentes de verão, a tocar viola e com os miúdos aos saltos atrás dele, numa mistura de música e alegria. Seria ele um homem pobre ou antes um homem rico com pouco dinheiro?

Em contraponto, lembro de um grande proprietário, possuidor de muitos imóveis dos quais era mais escravo que dono. Tinha bens mas não tinha rendimentos e como se recusava a vender fosse o que fosse, pedia dinheiro emprestado para viver, em condições inconcebíveis para um ser humano e muito menos para alguém com tantos meios. Seria ele um homem rico ou antes um homem pobre com muito dinheiro?

E todo este arrazoado ocorreu-me ao lembrar-me de alguém a quem o ceifeiro da vida colheu extemporaneamente, praticante de um modo de viver que muitas vezes invejei e me dava que pensar. Conheci-o já adolescente trazido pelo Jaime Moura, para trabalhar connosco no Clube Automóvel de Lousada. Versátil em línguas, excelente relações públicas, com a sua humildade e simplicidade rapidamente se tornou uma das figuras mais populares e queridas do meio automobilístico em que o Clube se movimentava, em Portugal e no estrangeiro, do Minho ao Algarve, de Portugal à Lituánia.

Foi um companheiro de inúmeras viagens em Portugal e para o estrangeiro em representação do CAL, comigo e com o Jaime Moura, tirando partido e usufruindo de cada uma com um prazer enorme. Sempre disponível para partir, pronto para ser útil e servir, foi uma ajuda inestimável para centenas de pilotos, com quem se preocupava como de alguém muito próximo. Tornou-se, nas palavras do norueguês Richard Stoen, “o rosto do Clube Automóvel de Lousada”.

De família humilde, foi sempre parco em recursos, mas viveu com uma intensidade rara, aproveitando todas as oportunidades que a vida lhe foi oferendo, fazendo amigos, viajando, conhecendo, enriquecendo-se. Com pouco viveu muito, como se adivinhasse que o seu amanhã não existiria. Usufruiu sempre de tudo o que pôde ao longo da “viagem” sem se preocupar com a “chegada”, como pai, como marido, como amigo, como caminhante da vida, como viajante, como ser humano. Deixou saudades, muitas saudades, entre a família, entre os muitos amigos e até simples conhecidos.

Sem qualquer dúvida que o Paulo Sérgio foi um HOMEM RICO, com pouco dinheiro.

Terceira idade

A melhoria das condições de vida em geral e dos cuidados de saúde em particular tem aumentado a esperança de vida e, por isso mesmo, tem promovido um crescente envelhecimento da população, prevendo-se que dentro de uma década os números passarão a ser muito preocupantes.

Entrar na terceira idade é entrar no princípio do fim da existência o que, por si só, já traz uma carga de infortúnios, como as limitações físicas, perda de audição, visão, memória, raciocínio e outras, havendo ainda os que são atormentados com aspectos transcendentais e espirituais. E o pior é que muitas vezes atravessam essa porta solitários, sem apoio nem amparo dos familiares.

O ritmo de vida atual afasta a família dos idosos, para quem passam a ser um fardo, alguém a quem não podem dar atenção, muitas vezes para quem não têm espaço, nem na casa nem no coração e, por isso, sentem-se marginalizados. Já Chateaubriand dizia que “outrora a velhice era uma dignidade, mas hoje é um peso”.

O envelhecimento da população associado à evolução da vida da sociedade e à alteração da estrutura da família tem como consequência um aumento da procura de instituições da terceira idade.

Quando um idoso tem família e é institucionalizado, tende a sentir-se revoltado, só e insatisfeito, afastado do seu meio e da suas ligações sociais. É verdade que, embora ainda raros, já há aqueles que por iniciativa própria se mudam para um lar, assumindo um resto de vida com autonomia dos filhos e uma não ingerência nas suas vidas. Na realidade, os lares são uma das grandes respostas às necessidades dos idosos nos dias de hoje, numa sociedade onde lhes falta espaço e valorização.

Vem isto a propósito dos lares a que estou ligado na Santa Casa da Misericórdia de Lousada e onde constato factos, comportamentos de familiares e utentes, presença ou esquecimento de uns e alegria ou desengano de outros. Há muitos e bons exemplos de filhos, outros familiares ou simplesmente amigos, que se preocupam com o bem estar do idoso, são visitas assíduas, um apoio constante. Deus os abençoe por essa dádiva.

Em contrapartida, alguns idosos são simplesmente “despejados” no lar pela família, muitas vezes depois de completamente “despojados” dos bens que angariaram ao longo de uma vida, e votados ao esquecimento. E a instituição que tome conta deles, que é sua obrigação. Sendo um princípio da Misericórdia de que “ninguém é descriminado na admissão pela sua condição económica”, somos confrontados com familiares a escamotearem os bens para que o ónus do custo passe para a Santa Casa. E depois de “despachado” para o lar, rapidamente se desligam, deixam de aparecer e remetem-no ao esquecimento, aliviados que estão do “fardo”.

Lembro-me daquela filha que ao ser-lhe comunicada a morte do pai e o dia do funeral disse não ter tempo para tal pois tinha de tratar do seu casamento ou dos herdeiros que nunca quiseram saber da mãe, mas que apareceram para brigar por uns brincos. Dizia-me um utente, já de idade avançada, marcado por estes abandonos: “Sabe, os filhos esperam algo de nós mas nós nada podemos esperar deles”. Não conseguindo substituir de todo a casa da família, os Lares são um porto de abrigo, a segurança no entardecer e o evitar de um dos maiores castigos do ser humano que é o envelhecer e morrer sozinho.