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Carta para a minha mãe

Sempre quis escrever-lhe esta carta para lhe transmitir o orgulho e o privilégio de ser seu filho, de me ter recebido e aceitado como uma bênção de Deus, e assim me considerar ao longo de todos estes anos. E faço-o hoje porque estarei muito longe para lhe poder dar um abraço no domingo, dia em que completa noventa anos. Se conseguir com estas palavras provocar uma emoção nesse rosto enrugado, e vê-la refletida nos seus olhos azuis que nos unem e identificam, isso só me basta como recompensa, como benesse do Senhor.

Quero começar por dizer que sou feliz por ter uma mãe querida, que me cobriu de bênçãos em tempos tão difíceis como foram esses do pós guerra, fazendo-me sentir muito amado. Sei que lhe dei muito trabalho por ser irrequieto e vivo, mas pequeno, indefeso, fraco e dependente como o comum dos homens. Embalou-me ao colo e alimentou-me de seu seio, implantando no meu coração desde criança o amor pela natureza, ao fazer-me livre mas responsável. Abraçou-me quando tinha medo do escuro e acordou tantas vezes durante a noite para vigiar meu sono. Foi benevolente sempre que arranquei os botões da roupa para jogar ao “pica” ou lhe pedia uma meia para fazer uma bola de trapos.

Seu coração sabia compreender os meus medos e dilemas de criança, guiando-me no caminho certo com amor, com carinho e em segurança, que me deram asas para voar. Ensinou-me o valor da caridade e da solidariedade pela sua prática, do respeito pelos pais, pelos mais velhos, pelas autoridades e pelos mais fracos.

Mostrou-me a importância da palavra, da honra e do bom nome como valores fundamentais e bens preciosos da nossa vida. E ensinou-me a rezar, a ter fé, a amar Jesus e crer em Deus, um Deus de bondade e amor, dando-me o exemplo. Não julgou meus atos nem meus erros, porque sabe que sou falível, fraco e imperfeito como ser humano que sou.

Foi o meu Anjo da Guarda que me deu o mundo e soube libertar-me a esse mundo para seguir meu caminho, constituir família. Deu-me ânimo sempre que falhei ou quis desistir, mais em gestos que diziam muito do que em palavras que não dizem nada. Seus olhos foram firmes quando precisei de uma lição, como quando me colocou de castigo na varanda por ter faltado à escola. Sacrificou-se por nós seus filhos e pôs-nos sempre em primeiro lugar, mesmo à mesa.

Tive a felicidade de ter uma mãe que não tinha de me acordar ao nascer do dia, para me entregar a outra e delegar-lhe a responsabilidade de ser minha mãe. Tive a felicidade de ter uma mãe sem a preocupação de ter só um filho por não ter tempo, porque tinha todo o tempo do mundo para nós. Tive a felicidade de ter uma mãe que estava sempre presente, me abraçava quando chegava preocupado ou feliz, alegre ou triste, porque estava lá, e que nunca me abandonou. Tive a felicidade de ter uma mãe que não tinha de correr, não tinha horários cheios com horas para tudo mas sem horas para nós. Tive a felicidade de ter uma mãe disponível quando me magoei no joelho, tive pintas como sintoma do sarampo, me agarrei à barriga por ter comido fruta verde ou quando apanhei uma bebedeira com ”troça” na destilação do bagaço na Casa da Estrada.

Construiu o meu caráter, ensinou-me o melhor caminho, dando-me a mão e guiando-me os passos. Apoiou-me sempre nas minhas opções dando-me ânimo, fazendo-me acreditar que era possível. Ensinou-me que a felicidade não é um direito adquirido nesta vida, mas que se conquista com muito trabalho e determinação. E se foram diversas escolas que me deram a instrução, já a educação que tenho devo-a essencialmente a si, minha mãe. Tem a capacidade de ouvir em silêncio quando me sinto perdido no caminho, de adivinhar meus sentimentos e encontrar a palavra certa nos momentos de incerteza, e de me acolher quando o mundo parece estar voltado de costas para mim.

É um mistério, uma caixinha de surpresas que mesmo com o passar do tempo esconde um saber que a ciência nunca chegará a conhecer. Conheço todos os seus traços físicos mas não sou capaz de saber a imensidão do seu coração. E conheço-lhe as lágrimas de alegria pelo nascimento dos netos que tanto desejou, mas também as lágrimas de sofrimento pela perda prematura do marido e de dois filhos que amava muito.

Sofreu em silêncio, sacrificou-se por todos nós e foi o centro do nosso mundo, à volta da qual tudo girava. Diz-se que Deus não podia estar em todo lado e por isso criou as Mães. Pergunto então: “Meu Deus, porque permites que as Mães tenham de ir embora? Porque será que as queres levar um dia?” É que Mãe não tem limite, é tempo sem hora, luz que não se apaga. Será que posso pedir um descuido de Deus, que a possa fazer eterna?

Obrigado MÃE e Feliz Aniversário.

O que S. Pedro diz, é para se fazer

Ao longo da minha vida tenho-me cruzado com todo o tipo de pessoas, desde educadas a malcriadas, de humildes a arrogantes, de pobres a ricas, etc., etc., presumindo que isso acontece com toda a gente. Não é possível fazer uma triagem só para lidarmos com as que nos agradam, até porque se não conhecêssemos as outras, não seria possível comparar. Só temos noção do amargo na comparação com o doce, como o bom com o mau ou o alto com o baixo, porque tudo é relativo.

Há uma espécie de pessoas em particular que me faz uma certa “comichão”: Os que se dizem “amigos”, nos batem com a mão nas costas e nos vão usando sistematicamente, dia após dia, sugando-nos, sem retribuírem a amizade.

Um desses “amigos” sempre que me via na rua, fazia-me parar e metia conversa para depois me “consultar” sobre a forma de tratar a macieira que tinha piolho ou como resolver o problema daquela “ferrugem” e “algodão” que as suas laranjeiras tinham, ou outra coisa qualquer. Eu dava-lhe as minhas sugestões com prazer de ajudar um amigo e cada um seguia o seu caminho, até nos encontrarmos novamente e me colocar outras questões, novos problemas. Foram anos assim, nestes encontros/consultas de rua, sem qualquer problema, sem complicação nem retribuição. Um dia, estava numa repartição local a tomar notas sobre a forma como fazer um requerimento e ele, apercebendo-se do que eu queria , tirou-me o papel da mão e disse: “Deixa que eu faço-te isso”. Protestei alegando que era uma coisa simples e que eu mesmo o faria, mas ele insistiu e levou-me o rascunho. Nessa mesma tarde entregou-me o requerimento, uma folha A4 escrita de um lado, dizendo que eu só precisava de assinar e entregar na repartição. Agradeci-lhe, virei as costas para me ir embora mas, para descarga da consciência, voltei atrás e perguntei-lhe: “Quanto te devo?”. Com a prontidão de quem já está preparado, respondeu-me: “Deves-me XXX, mas podes pagar depois”. Fiquei chocado, não só por ele ter “lata” de me cobrar como, pior ainda, apresentar uma conta dez vezes o preço normal do serviço prestado… voluntariamente.

Ao recordar-me deste e de outros “amigos” com quem me cruzei nesta viagem que é a vida, lembrei-me de uma história real: O senhor Bastos era proprietário de uma loja de tecidos em Lousada, no tempo em que não existiam lojas de “pronto a vestir”, e gostava dos vendedores, especialmente de um que tinha muito jeito para contar anedotas. Mal chegava, fazia-o sentar-se num banquinho que a empregada trazia, para “o meu amigo me contar as últimas”. E ele lá contava fazendo-o rir, mas quando se falava de negócios o sr. Bastos respondia-lhe sempre: “Que azar, comprei na semana passada a outro , hoje não preciso de nada”. E isto repetia-se regularmente, sem que ele lhe comprasse um metro de tecido sequer. Um dia, quando o sr. Bastos o mandou sentar, ele disse-lhe: “Hoje não tenho anedotas para contar”. “Não pode ser, pense um pouco porque sabe sempre alguma nova”, respondeu. “Não, não tenho, e a única coisa que lhe podia contar era um sonho, mas é melhor não o fazer, pois é desagradável”. Mas insistiu tanto que ele acabou por contar: “Sonhei que morri e fui para o Céu. À porta estava o S. Pedro que me mandou esperar ali ao lado. Fiquei a ver as pessoas que estavam sempre a chegar e o S. Pedro deixava entrar algumas no Céu mas também mandava outras para o Inferno ou para o Purgatório. Ao fim de algum tempo comecei a ficar aflito, com vontade de fazer as minhas necessidades e fui falar com ele: “Senhor S. Pedro, estou aflito, onde é que me posso aliviar?” E ele indicou-me uns arbustos e que ali atrás havia um buraco onde o poderia fazer. Assim fiz, fui atrás dos arbustos e lá estava o buraco. Desci as calças e quando me ia a aninhar olhei cá para baixo, para a Terra, e que vejo eu? A careca do sr. Bastos, mesmo por debaixo do buraco. “Puxei à pressa as calças acima, fui ter com S. Pedro e disse-lhe para me arranjar outro sítio porque ali não podia ser, pois por debaixo daquele buraco estava um cliente meu. E o S. Pedro perguntou-me: “E ele já te comprou alguma coisa”? “Não, nunca me comprou nada”, respondi prontamente. E com toda a convicção, ele ordenou-me: “ENTÃO C… (FAZ-LHE) EM CIMA.” E não é que a história do sonho deu resultado!!!

Por isso, no caso de serem os nossos ditos “amigos” a estarem por debaixo do buraco, seja ele qual for, devemos seguir o conselho que S. Pedro deu ao vendedor, despejando o “saco” à vontade. Sejam eles carecas ou cabeludos…

Páscoa, que tradição?

A Páscoa cristã é a festa da celebração da vida sobre a morte, pela Ressurreição de Jesus e é tida como o dia mais importante do calendário cristão. Mas a Páscoa tradicional associou-lhe outros símbolos, uns com algum significado e outros meros produtos que o marketing publicitário conseguiu impor.

Dos ramos (normalmente de oliveira) à cruz, passando pelos óleos, lava-pés, fogo, círios, velas e campainhas, entre outros, para não falar do coelho, símbolo da fertilidade, e dos ovos, símbolo de uma nova vida, são muitos os que fazem parte desta festa religiosa. Nas minhas imagens mais distantes, revejo uma Páscoa tradicional, praticada com fervor religioso e muita alegria.

No domingo anterior participava na missa do domingo de ramos, carregando um grande ramo de oliveira, mais ou menos decorado, disputando o tamanho com os outros rapazes, havendo mesmo quem chegasse a levar uma árvore inteira. Celebrava-se a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém, ovacionado por uma turba de gente que dias depois o havia de condenar e ver crucifixar.

Como é que não aprendemos mesmo nada… Durante a semana santa a minha mãe fazia uma autêntica “barrela” à casa, lavando-a por dentro e por fora, tal como toda a gente da aldeia, para receber o “SENHOR” com dignidade.

A confissão era obrigatória, e a participação na missa pascal, a Eucaristia de Aleluia, uma parte importante de todo o cerimonial. No dia de Páscoa, o “Compasso” percorria a aldeia e entrava em todas as casas, das mais humildes às mais ricas, não havendo quem não abrisse a porta a tão importante visita. E nós miúdos, geralmente com roupa nova, passávamos o dia com uma regueifa enfiada no braço, a prenda tão esperada pelos mais felizardos, ou com uma simples “pitinha” na mão, oferecidas pelos pais ou padrinhos, rua abaixo rua acima, ufanos com a melhor prenda do mundo. Atrás do “Compasso” não ia a banda porque não havia dinheiro para tal, mas ia o povo da aldeia, em festa, acrescido dos familiares que haviam vindo de mais ou menos longe, comungar no convívio e na amizade. Em casa ofereciam-se ovos ao senhor padre, que eram recolhidos num cesto por um acólito. Muito me interroguei para onde iam tantos ovos… E, aqui e ali iam rebentando alguns foguetes para anunciar a “chegada do Senhor”.

Anos mais tarde a minha avó passou a oferecer a cada neto uma rosca de pão de ló que a doceira de Aparecida trazia no próprio domingo, um luxo que duraria por alguns dias, até ao rapar do papel. Mas a Páscoa foi perdendo o seu simbolismo, perdendo algo do seu carácter sacro, com o desaparecimento de certos costumes da sua liturgia. Os hábitos foram-se alterando, assistindo-se a uma fuga progressiva às tradições pascais, acelerada pela melhoria das condições de vida da população, o que deu acesso a alternativas assentes em numerosa oferta turística. Muitas famílias começaram a aproveitar o período pascal para rumarem ao Algarve ou a um qualquer destino exótico, para trabalharem o “bronze” com vista a estarem apresentáveis nas próximas férias de verão. Até os adolescentes, estudantes do secundário, passaram a utilizar o período pascal para viagens de finalistas rumo a destinos turísticos junto ao Mediterrâneo na vizinha Espanha, para alguns dias de liberdade plena, longe do qualquer tipo de controle, permitindo-se exageros cujos resultados nem sempre têm um final feliz.

A Visita Pascal faz parte de um conjunto de práticas e valores espirituais que foram transmitidos de geração em geração, algo que é seguido e conservado com respeito e a que chamamos tradições. O que se questiona hoje é da importância dessas tradições e da sua prática, havendo quem defenda que a sociedade se deve modernizar e deitar tudo isso para o caixote do esquecimento. Mas será mesmo assim?

Uma sociedade que não tenha valores, que não tenha memória, que não preserve as suas raízes, é uma sociedade sem passado e sem futuro, sem cultura própria, atípica e monocórdica. As tradições fazem parte dos valores que nos diferenciam de outras sociedades, de outras culturas, e constituem em si mesmas uma riqueza única a preservar.

Os povos mais evoluídos fazem-no com muito cuidado e até as aproveitam como forma de promoção turística. Mas criou-se entre nós uma cultura de rejeição das tradições como se fossem incompatíveis com a modernidade, uma visão redutora e atrasada da questão. E no que diz respeito à tradição Pascal, mesmo para os que se afastaram ou não têm qualquer prática religiosa, é importante, quanto mais não seja, como ponto de encontro de familiares e velhos amigos de quem a vida nos afastou, para uma comunhão de afetos.

E em tempos de crise, em que começam a escassear os meios para férias pascais num qualquer destino em busca de momentos de felicidade, talvez seja tempo de procurar encontrar essa felicidade bem dentro de nós, onde é real, em vez de a procurarmos para lá do arco íris, onde tantas vezes não passa de uma miragem…

Hoje, devedores, e amanhã? Caloteiros?

O meu amigo João está radicado no Brasil há mais de cinquenta anos e, nos últimos, tem dividido o seu tempo entre o Rio de Janeiro e Lousada. Assim, foram inúmeras as viagens que fez do Rio para cá e vice versa.

Ora, no tempo em que para viajar era costume mandar fazer um guarda roupa novo, antes de uma dessas viagens de vinda o João foi ao seu alfaiate encomendar dois “paletós”, isto é, dois fatos. Ali encontrou outro português, com fama de caloteiro crónico, que também ia comprar um “paletó”. Depois do João ter acertado tudo com o alfaiate, seguiu-se o seu conhecido que fez uma “fita” terrível a marralhar o preço, obrigando o alfaiate a fazer-lhe desconto. Já cá fora, o João voltou-se para ele e disse-lhe: “ Oh meu amigo, para que é que você teve aquele trabalho todo pedindo para baixar o preço, se você não lhe vai pagar nunca”? E com a maior desfaçatez o outro respondeu-lhe: “Sabe, João, eu gosto muito daquele cara e é que assim… ELE PERDE MENOS…”

Circulou na net uma carta dita da autoria de um “caloteiro, que dizia mais ou menos o seguinte: “Prezados Senhores: Esta é a oitava notificação que recebo de V. Exas.. Acontece que estou devendo a outros e todos esperam que eu lhes pague. Contudo, os meus rendimentos mensais só permitem que eu pague duas prestações por mês, ficando as outras para o mês seguinte. Estou ciente que não sou injusto, daquele tipo de pessoas que prefere pagar a esta ou àquela empresa, em detrimento das demais. Ocorre o seguinte: Todos os meses quando recebo o meu salário, escrevo o nome dos meus credores em pequenos pedaços de papel que enrolo e coloco numa caixa. Depois, olhando para o lado, retiro dois papéis que são os “sortudos” que irão receber o meu rico dinheirinho. Os outros, paciência, ficam para o mês seguinte. Garanto aos senhores que a vossa empresa consta todos os meses na minha caixa. Se não lhes paguei ainda, foi porque os senhores estão com pouca sorte. Para acabar, uma advertência: Se continuarem com essa mania de me enviarem cartas de cobrança, ameaçadoras e insolentes, serei obrigado a excluir o nome de V. Exas. da caixa nos meus sorteios mensais. Cumprimentos”.

Sempre existiram caloteiros, mais ou menos conscientes, mais ou menos profissionais, embora em número tanto menor quanto mais recuarmos no tempo. Há meio século, ser-se bom pagador era uma questão de honra, caso contrário era uma vergonha para o próprio e para a família. Quando não se podia pagar era-se humilde, dava-se a cara pedindo desculpa e aceitando outras formas de liquidar o débito.

A transformação política, económica e social que o país sofreu, foi também acompanhada de uma perda de valores éticos, morais e religiosos a troco do materialismo em que o TER virou muito mais importante que o SER.

Era preciso ter a qualquer preço, mesmo que se tivesse de passar por cima de quem quer que seja. Daí o querer ter-se tudo, tantas vezes sem se poder. Foi assim que a sociedade deu lugar a uma geração de caloteiros desavergonhados, arrogantes, malcriados e até agressivos, orgulhosos de o serem, intimidando os credores como se estes fossem os culpados da sua desonra.

É vê-los a comprar carrão novo e a negarem-se a pagar o que devem, alegando não terem como. Nada têm em seu nome mas estão bem de vida, divorciam-se continuando a viver com a mulher, enquanto fazem falir empresas à sua volta sem qualquer tipo de escrúpulos. E o mais lamentável é que a ineficácia do nosso sistema de justiça joga a seu favor, diante do qual os lesados se questionam “afinal de que lado está a justiça?.

A crise veio pôr a nu ainda mais o bom e o mau que há em cada um de nós, pois é nos momentos difíceis que os homens se revelam: Homens ou moços. Podemos deixar de ter condições para pagar, para cumprir as nossas responsabilidades, tantas vezes por culpa de terceiros. Mas aí é preciso assumir (ainda mais), conversar em vez de não atender o telemóvel, aparecer em vez de fugir.

Mas vem tudo isto a propósito dos mais de duzentos mil milhões de euros (Uma pipa de massa) que o país deve e que me leva a perguntar: Qual era a intenção dos “homenzinhos” armados em governantes, de vários quadrantes políticos, que durante 38 anos criaram e esconderam o “monstro”? Pensariam em pagar só duas prestações à sorte, como o caloteiro da carta? Pensariam como o primeiro, em pedir para baixar o valor do débito para, não pagando nada, o prejuízo dos credores ser menor? Ou julgavam-se com esperteza suficiente para convencer os credores de que, afinal, eles é que nos deviam?

Uma coisa esses “homenzinhos” conseguiram: FAZER DE TODOS NÓS DEVEDORES, sem termos consciência de o sermos, em oposição aos casos citados. E amanhã? SE CALHAR, … “CALOTEIROS”.

O Espingardeiro

Há quem tenha nascido na época errada. Foi o caso do Alberto espingardeiro, nome como ficou conhecido não só entre as gentes de Lousada como entre caçadores e amantes de armas de fogo no norte do país, pois o seu engenho, arte e criatividade faziam com que merecesse ter nascido num outro tempo, com outros meios e oportunidades, que o seu talento natural mereciam.

Filho do senhor Paulino, trolha de profissão, e da senhora Albertina, era o mais velho de três irmãos de uma família humilde. Se durante algum tempo trabalhou como latoeiro, a sua habilidade e criatividade naturais levaram-no a aprender por si próprio os segredos das armas e a fazer autênticas maravilhas nesta arte, num tempo em que não existiam meios tecnológicos para a exercer. Já casado, vivia em Cernadelo mas tinha a sua oficina em metade de uma garagem que o meu pai construíra perto de casa.

Foi assim que desde a escola primária eu passava muito dos tempos livres na sua oficina para o “ajudar” a polir armas antes do “banho”, a acender a forja até pôr o ferro em brasa ou a fazer outra coisa qualquer. E ele sabia entusiasmar um miúdo como eu.

Ofereceu-me como prémio alguns revolveres velhos, que guardei como se tratasse de um grande tesouro, fazendo-me sonhar com aventuras de índios e cowboys. Não havia arma que não reparasse, independentemente de lhe ser familiar ou não e da gravidade da avaria, pois era só uma questão de tempo para a estudar. Caçadeiras de canos rebentados, gatilhos partidos, revolveres e pistolas com avarias mais ou menos complicadas, todas tinham solução nas suas mãos. Como não existiam peças para substituir as avariadas, fabricava-as a partir de uma barra de ferro, com uma precisão milimétrica Nas mãos dele vi nascer de pedaços de madeira, geralmente de nogueira, coronhas de espingarda que eram autênticas esculturas, trabalhadas artesanalmente com ferramentas rudimentares que fazia propositadamente para o efeito, e envernizadas com cuidado. A oxidação das partes metálicas, num “banho” especial por ele desenvolvido, dava aos canos e outras peças uma cor e um brilho tal, que as armas ficavam como novas.

Viajava na sua velha motorizada de capacete enfiado na cabeça, sempre a uma velocidade arrastada como se nunca tivesse pressa de chegar a lado nenhum. O almoço comia-o na oficina, afastando a ferramenta para o lado e fazendo da bancada de trabalho a sua mesa de refeições. E depois deste, prolongava o prazer da “mesa” deleitando-se a tocar flauta.

Era um bom conversador, sempre com resposta na ponta da língua, alguém com quem o tempo não aborrecia. Tinha um sentido crítico muito próprio e bem humorado, com conversas armadilhadas de gozo.

Num domingo depois da missa, eu ia para casa do Arnaldo e ao passarmos sobre o regato no lugar das Casas Novas, vimos bastantes peixes no canal que levava a água ao moinho, entre os quais uma truta razoável, meios zonzos, fruto de asneira grossa que alguém tinha feito dias antes no regato e da qual eu havia sido espectador inocente. Ao ver os peixes naquele estado, como tinha “culpas no cartório” e para “apagar indícios”, o Arnaldo tirou os sapatos, arregaçou as calças e meteu-se na água que não lhe chegava aos joelhos, para os apanhar. No momento ia a passar o espingardeiro na sua motorizada que, ao vê-lo naquela figura, parou e ficou a apreciar a cena.

Como o Arnaldo não conseguia apanhar a truta que, meia zonza, teimava em escapar-lhe, disse-lhe em tom conselheiro: “Apanha-a bem se a pescar “ao gueto”. O Arnaldo olhou-o e na sua inocência perguntou “como é que se pesca ao gueto”? Com ar de santo respondeu-lhe: ”Vire as costas à truta, desça as calças abaixo, ponha um bocado de pão no rabo e meta-se na água; quando a truta for comer o pão, aperta as bochechas e apanha-a”. Foi risada geral entre os miúdos que também vinham da missa e à nossa volta assistiam à “pescaria”.

Olho para trás do tempo e ainda ouço as notas da sua flauta e as suas conversas humoradas. Mas sobretudo, relembro um Homem humilde mas muito inteligente, de rara habilidade e poder criativo que, apesar de não ter vivido no tempo que merecia, foi um artista excepcional na sua arte.

Pela importância que teve nas pequenas coisas que me ajudaram a crescer, só posso dizer: Obrigado, senhor Alberto espingardeiro.

O pagador das promessas… dos outros

Quem não se lembra da Dona Branca, a “banqueira do povo”, uma mulher surgida do nada, que prometia pagar juros de 10% ao mês a quem investisse o seu dinheiro nela?

Recordo-me que, no decorrer de uma edição da Agrival em que participei, ter sido massacrado por um colega meu que se dizia seu colaborador, tentando vender-me a promessa de tais juros e garantindo-me o retorno do capital investido em dez meses, demasiado tentador para o mais cético. E ainda hoje me pergunto qual a razão porque não caí no logro…

A verdade é que muitos milhares de portugueses lhe entregaram as suas poupanças, alimentando uma ilusão que só pôde durar enquanto a entrada de dinheiro foi suficiente para alimentar o tal pagamento de juros, para além dos gastos e desvios feitos por ela e pelo bando que a rodeava. Quando isso se inverteu, ruiu o esquema e alguns milhões de contos tinham voado.

Resultado: Os investidores, na sua maioria gente humilde, pagaram a promessa … de outros. E como foi possível? Como é que uma mulher de aspeto tão simples conseguiu enganar tanta gente, alguns tidos como muito inteligentes? Bom, quanto maior é a mentira mais fácil é acreditar nela.

Os burlões normalmente usam a ganância ou a vaidade dos incautos como isco para os ludibriar, chamando-se a isso “ir buscar lã e sair tosquiado”. Este caso, apesar de muito badalado, não serviu de lição a ninguém porque outras “Donas Brancas” se seguiram e de que são exemplo os casos dos bancos BPP e BPN, noutra escala e com outra roupagem, que lhes conferia um ar de respeitabilidade. Se no caso do primeiro voltaram a ser os investidores a pagar as promessas… dos outros, já no caso do BPN quem pagou as ditas promessas… dos outros, não foram os investidores, aqueles que correram atrás da ilusão, mas todo um povo que nada tinha a ver com o caso, por decisão de meia dúzia de políticos, unilateralmente e em seu nome. Neste caso, foi o povo o pagador das promessas… dos outros.

Mas nisto de prometer e mandar a conta a outros, a lista é tão extensa que teria de escrever um livro e não um simples artigo de fim de semana, para relatar (só) os casos que conheço. Por isso vou-me ater numa área onde as promessas foram tantas, tantas ( e continuam a ser), que a fatura tinha de ser brutal… para (nós) os outros.

Após o 25 de Abril cada político passou a prometer mais do que o seu antecessor, num desaforo e descaramento impressionantes, sem cuidar de dizer quem pagaria a fatura. Prometeram-nos, e até lavraram na constituição deste país, educação, saúde e sei lá bem mais o quê, inteiramente grátis, autoestradas, hospitais, escolas, estádios, exposições mundiais e outras que tais, para que o nosso futuro fosse mais risonho, porque deveríamos pertencer ao pelotão da frente da Europa. E nós acreditamos…

Bom, o certo é que depressa se abriram os cordões da bolsa que a ditadura mantivera fechada, para cumprir o prometido. As obras começaram a ser feitas, o desenvolvimento aconteceu, embora o passo dado “fosse maior que a perna”. E se em 1975 se gastou mais do que se produziu, qual era o problema? Havia quem emprestasse dinheiro à república para que as promessas fossem sendo cumpridas. E no ano seguinte gastou-se novamente demais, dando origem a uma palavra nova para nós: o deficit. E a partir daí e até aos nossos dias, foi um regabofe de promessas, sensatas ou insensatas, pois o que era preciso era prometer para ganhar eleições e em muitos casos fazer, porque era no fazer que se pagavam favores, ganhavam comissões, encontravam patrocinadores para as campanhas eleitorais para prolongar o tempo no poder, em jogos de interesse onde a corrupção grassou e o dinheiro correu. E neste fazer de obra por todo o país esconderam-nos que se pedia mais e mais dinheiro a entidades externas cujo negócio é especular.

Mas continuamos a ser iludidos (e até participamos nessa ilusão pedindo para que fizesse mais do que o bom senso aconselharia). Por isso batemos palmas aos estádios de que agora ninguém quer ouvir falar, à Expo e ao Euro 2004 feitos para os políticos se porem em bicos de pé, às autoestradas exigidas pelo interior convencidos que iriam ser à borla e que agora vão pagar com língua de palmo (desprovidos que foram de alternativas), aos hospitais e outros que tais feitos pelas parcerias público/privadas de que ninguém quer ser pai, etc., etc. … E ainda ficaram na gaveta o TGV, o aeroporto da Ota/Alcochete, a nova travessia do Tejo, a miragem de uma candidatura aos Jogos Olímpicos., por falta de tempo para…

Mas os credores, esses “amigos” que nos financiaram nestes quase 40 anos sem se esquecerem de cobrar juros cada vez mais altos, ao verem que corriam o risco de nem esses juros receberem, disseram “BASTA”, impondo-nos a Tróika. E vieram novos governantes, rapidamente transformados em “comissão liquidatária” ou “administração da massa falida” e que, perante a fatura das promessas dos inúmeros (ir)responsáveis que os antecederam (dotados de imunidade criminal) e que nos prometeram o Céu enquanto nos preparavam o Inferno, agiram como “baratas tontas”, sem rumo nem objetivo.

E é por isso que nós, Povo deste país, estamos a ser espoliados, empobrecidos brutalmente, obrigados a ser os Pagadores das Promessas… dos Outros.

Zé do Telhado, “E eu é que sou ladrão!?”

Tenho uma atração especial por essa figura mítica, misto de bandido e benfeitor, que foi o Zé do Telhado. Talvez pelas histórias contadas pela minha avó ou mesmo por ter vivido muito perto da casa de Talhos, uma das que assaltou, ficou-me a curiosidade, porque não, a admiração por esse homem.

Nascido há cerca de duzentos anos (1818), foi a partir de Caíde que se tornou homem casado, militar distinto e salteador com cunho de repartidor, louvado no coração do povo.

Tornou-se militar nos “Lanceiros da Rainha” em Lisboa, onde se distinguiu pela sua conduta e coragem, levando-o a tomar parte na luta pelos liberais contra os setembristas. Derrotado, fugiria para Espanha, de onde regressou para aderir à Revolução da Maria da Fonte às ordens do general Sá da Bandeira.

Nessa luta foi notável pela sua bravura, que o levaria a receber a mais alta condecoração de Portugal. Com a derrota da revolução, caiu em desgraça e foi expulso do exército, regressando a casa pobre e ostracizado pelos vencedores.

É o paradoxo: Se a revolução tem vencido, as suas qualidades de valoroso combatente e homem de coragem ter-lhe iam aberto as portas ao reconhecimento como herói, à retribuição dos vencedores e ao acesso às benesses que o poder distribui (já vi este filme…). Mas ao sair vencido, viu-se marginalizado, sem direito a trabalho que lhe permitisse sustentar a família, presa fácil para os que o tentavam para o caminho dos assaltos como única saída.

Como assaltante foi corajoso e, coisa rara, cavalheiro, impondo alguns códigos de conduta ao seu bando, desde o respeito pelos mais fracos e pelas mulheres. Só roubava os ricos e fazia questão de distribuir parte do produto dos roubos pelos pobres.

Foi sempre um homem com dignidade, não virando a cara à luta onde quer que fosse, tanto como combatente ao serviço do reino ou das causas que defendeu, como nos assaltos ou nas disputas nas feiras e romarias.

A benemerência do salteador terá ofendido mais os poderes de então do que propriamente os roubos que fez e talvez por isso tenha sido perseguido sem tréguas. E a denúncia das injustiças sociais fizeram com que fosse tão louvado pelos pobres (e até por ricos), mas um incómodo para o poder.

Como dizia a senhora da Casa de Carrapatelo, onde realizou um dos seus maiores assaltos, “existem pessoas de bem que nunca deram às classes humildes um centésimo do que Zé do Telhado lhes deu”.

É curioso ser precisamente essa senhora de Carrapatelo a dar-lhe guarida na sua casa do Porto nos dias que antecederam a sua gorada fuga para o Brasil, para além de se recusar a fazer parte da acusação e assinar o respetivo auto.

Afinal o que é que essa respeitável senhora viu no assaltante? O ladrão mau, o militar exemplar ou o homem? E ao reler as histórias da sua vida, não posso deixar de o comparar aos ladrões de agora, o que faz dele um “aprendiz de feiticeiro”, um cavalheiro respeitável.

Olhemos as diferenças: Zé do Telhado nasceu pobre, casou pobre e pobre ficou. Os novos assaltantes, se nascem pobres, depressa ficam ricos. Zé do Telhado roubava aos ricos para dar aos pobres. Os ladrões de hoje roubam aos pobres para serem ricos. Zé do Telhado tinha pouca instrução. Os de hoje têm cursos superiores, licenciaturas de fim de semana ou por créditos. Zé do Telhado roubava à noite, mas dando a cara, sem disfarces. Hoje roubam de dia, escondidos em luxuosos gabinetes, disfarçados de banqueiros, gestores públicos, políticos e sei lá que mais. Zé do Telhado andava a pé ou a cavalo.

Os ladrões deste século viajam recostados no banco de trás de potentes máquinas. Zé do Telhado, como militar foi um herói, transformado em ladrão. Hoje há demasiados ladrões transformados em heróis, muitas vezes carregados aos ombros do povo que irão espoliar. Zé do Telhado utilizava a arma ou a força do seu braço para assaltar. Os atuais usam a demagogia, a palavra e a caneta. Zé do Telhado viveu num casebre. Agora os ladrões vivem em condomínios de luxo ou mansões palacianas, pagas pelo “Zé”. Zé do Telhado tinha horror à arrogância. Os de hoje praticam-na. Zé do Telhado serviu o estado (nessa altura o reino) com zelo, dignidade e coragem. Os ladrões de agora servem-se do estado sem qualquer tipo de escrúpulos.

Zé do Telhado foi preso e condenado ao exílio em África. Os maiores ladrões do nosso tempo nunca são presos e são eles que se exilam voluntariamente em “reflexão” e a comer “à la carte”, num qualquer paraíso dourado. Como vivemos num estado de direito (ao que se diz…) onde todos somos iguais, das duas uma: Ou a Justiça faz justiça e mete na prisão aqueles (inúmeros) senhores que ao longo das últimas décadas delapidaram o nosso dinheiro, o nosso património, tratando-os como ladrões, ou que o Povo faça justiça e erga uma estátua ao Zé do Telhado como cavalheiro e homem de bem, retratando-o do que a Justiça lhe fez e elevando-o à categoria de herói nacional, pioneiro na ação social.

Porque somos todos iguais… embora alguns sejam mais iguais que outros… Se fosse vivo e ao ver o que se passa, Zé do Telhado diria: “E eu é que sou ladrão…”

A música de que ninguém gosta…

O diferendo que opõe um grupo de ex-músicos da Banda e a Associação de Cultura Musical de Lousada (ACML) continua, agora em tribunal, com duas providências cautelares interpostas, uma do lado dos músicos impugnando a última assembleia geral da ACML e outra pela instituição, para que lhe sejam devolvidas as viaturas que lhe pertencem e que estão retidas pelos dissidentes.Está a ser difícil o regresso à normalidade.

Em Junho do ano passado escrevi aqui sobre a importância dos sócios da Associação de Cultura Musical de Lousada (ACML) participarem numa assembleia geral, onde estaria em discussão a eventual saída da Banda de Música de Lousada do seio da ACML, para estarem presentes, Bom, não mobilizei os associados, sinal de que ninguém ligou “peva” ao meu blá blá e à razão do artigo, porque só comparecemos “meia dúzia de gatos pingados” – e desculpem-me os presentes a expressão – porque o caso merecia mais. Mas, afinal, a “montanha pariu um rato” pois cedo se constatou que nem os próprios requerentes da mesma queriam que a banda saísse da associação (como é possível?), pelo que acabou por ser deliberado que a Banda de Música de Lousada era, e continuaria a ser, parte integrante da ACML.

Para meu espanto, o maestro da banda – também dissidente – revelou em plena assembleia geral a verdadeira razão invocada pelos músicos: Uma ilegalidade que a direção não aceitou e que iria pôr em causa a instituição. Se tudo pareceu tranquilo, o certo é que no mês seguinte foi fundada uma nova instituição: A Banda Musical de Lousada.

Na sua génese esteve o grupo de músicos dissidentes que, entretanto, continuaram a tocar na Bande da ACML, onde não só fizeram as festas que a direção contratou como outras de que eles próprios trataram em regime de autogestão, sem que o dinheiro recebido destas tenha entrado na contabilidade da instituição. E ninguém ficou preocupado com isso… E na ACML continuaram as assembleias gerais, uma anulada e outra encerrada mal começou, numa manifesta falta de preparação e respeito pelos estatutos, por quem de direito. Só numa terceira foi possível discutir e fazer aprovar os novos estatutos e regulamentos, pelos quais se passará a reger.

Face à “debandada” da maioria dos músicos após as festas rumo à nova associação, a direção da ACML prescindiu dos seus serviços e solicitou a devolução dos bens que estavam à sua guarda, como as fardas, instrumentos e viaturas, mas pouco ou nada conseguiu reaver do património que lhe pertence.

Assumida a saída dos músicos e face à posição da direção da ACML em renovar a Banda de Lousada, os responsáveis da nova associação viram-se confrontados com a falta de meios (instrumentos, fardas, viaturas, local de ensaios) que esperavam receber da ACML e pediram ao presidente da câmara para moderar o diferendo. Este junta as partes mas os diretores da ACML revelam-se surpreendidos com a presença dos dissidentes e a razão conciliadora da reunião, até porque horas antes tinham sido notificados pelo tribunal da impugnação da assembleia geral pela outra parte.

Perante esta atitude provocatória, como era possível apelar à conciliação? Até o próprio presidente não reagiu bem (ou reagiu) ao tomar conhecimento desse facto, pelo que tudo ficou “em águas de bacalhau”. E é assim que estão dois processos em tribunal. Esperemos que se resolvam este ano, até porque parece não existirem razões válidas para a impugnação, por um lado (embora espero para ver) e por outro, a entrega das viaturas (e outros bens) parece ser evidente.

Julgo que tudo isto não passou de uma forma de pressão dos dissidentes sobre a direção da ACML na tentativa de conseguirem desta meios para o funcionamento da BML. Provavelmente escolheram a pior maneira, pois “não é com vinagre que se apanham as moscas” e até porque a direção não tem poderes para tomar tal decisão, poderes esses que pertencem à assembleia geral e que nunca foi ouvida nem achada nesta matéria. Aos músicos assiste-lhes o direito de deixarem a ACML e formarem as associações que entenderem, mas não podem exigir daquela aquilo que por direito só a ela pertence.

Lousada passa a ter duas bandas de música, praticamente com o mesmo nome, o que é caricato: A Banda de Música de Lousada (da ACML) e a Banda Musical de Lousada (da BML).

A primeira detém o património centenário da Banda de Lousada e a segunda reivindica esse direito para si, por ter levado a maioria dos músicos. É como se os jogadores do Porto ou Sporting resolvessem ir embora, formar um novo clube e achassem que tinham o direito ao nome, historial, equipamentos, estádio, viaturas, etc.. Não será tudo isto um absurdo, sabendo-se agora qual a razão objetiva que está por trás, e que retira toda a autoridade moral que, eventualmente, se possa ter? Aguardemos as cenas dos próximos capítulos.

Joaninha, voa, voa…

Lembrei-me hoje que neste verão vi uma joaninha, coisa que já não me acontecia há muitos anos. De um vermelho vivo e pintas pretas, lá estava ela pousada numa folha. O grilo, a “cornela” e a joaninha foram os três insetos que fizeram parte das minhas brincadeiras de criança, ocupando o lugar dos sofisticados brinquedos de hoje.

O grilo encontrava-o nos montes, guiado pelo seu gri-gri que não é mais que um roçar das asas para atrair a fêmea. Aproximava-me sorrateiramente para descobrir o seu esconderijo, um buraquinho na terra, onde se escondia ao sentir a minha presença. Para o tirar, apanhava uma “palheira” comprida que enfiava no buraco, rolando-a constantemente, enquanto recitava a lenga lenga: Grilinho sai sai, que aí vem o teu pai Com uma faca de cartão, que te corta o coração. Mais empurrado pelas cócegas da “palheira” do que pela cantoria, o grilo lá saía e guardava-o numa caixa de fósforos com buracos para entrar o ar, o antepassado das modernas gaiolas de hoje, onde era alimentado a folhas de alface.

A “cornela”, nome pelo qual era conhecido um grande escaravelho, apanhava-a nas “nocas” dos carvalhos a que subia com facilidade. Agarrava-as pelo dorso para não me apertarem os dedos com as suas garras, amarrava-lhes uma linha à pata e fazia com que voassem à minha volta, presas pela linha, qual avião telecomandado.

A joaninha era o mais pequeno e mais colorido dos três, sendo tido como portador da sorte. Sempre que encontrava uma, e acontecia muitas vezes, passava-a da folha onde estava para as costas da mão e entoava uma cantilena na tentativa de a fazer voar: Joaninha voa, voa, que o teu pai foi para Lisboa Que lá está tua madrinha, que te dá pão e sardinha. E quando levantava voo, corria atrás dela repetindo o refrão, como querendo que ela voasse eternamente.

Os anos passaram, deixei de brincar com os três insetos que fui vendo cada vez menos, até deixar de ver joaninhas, ao mesmo tempo que descobria a sua importância para todos nós e daí ser considerada como portadora da sorte.

No mundo dos insetos, as joaninhas são predadores que se alimentam de outros insetos, quase todos prejudiciais às plantas, tais como afídios, mosca da fruta, pulgões, piolhos da folha, etc., podendo comer 50 pulgões ou mais por dia, ajudando ainda na polinização.

Com estas ações, são benéficas para o ser humano em geral e os agricultores em particular mas, paradoxalmente, são estes o seu maior inimigo. A explosão demográfica e a melhoria das condições de vida implicaram um aumento das produções agrícolas pelo que houve que “desenvolver” a agricultura, criando e utilizando pesticidas para combater animais e plantas considerados nocivos.

Foi com os inseticidas que se passaram a eliminar os escaravelhos, os pulgões, as moscas da fruta e outros. Os mais velhos ainda se lembram do DDT, um pó “milagroso” que o “ministro” de Meinedo vendia nas feiras para matar piolhos, com o slogan de “mata toda a bicharada”. E matava mesmo…

Foi um inseticida que deu o prémio Nobel ao seu inventor, e que serviu para combater insetos portadores da malária e até passou a ser usado para matar pulgas e piolhos. Mas o seu criador e os utilizadores não se preocuparam com os efeitos adversos, e até os escamotearam. “Esqueceram-se” que ao matar os insetos nocivos também matavam os insetos amigos, como a joaninha, para além de deixarem resíduos que o tempo não fazia desaparecer.

Só quando Rachel Carson em 1962 publicou o seu livro “Primavera silenciosa” é que, renitentemente, os americanos e depois o resto do mundo, acordaram para o problema. No seu livro trouxe à luz do dia os problemas do DDT e fazendo ver que “todos os seres vivos dependem uns dos outros e de um ambiente saudável para viver”. Relatou casos da presença do pesticida no leite materno das mulheres, nos tordos de Cap Cod, que morreram todos, e elevadas concentrações de DDT em pinguins, ursos polares e até nas baleias da Gronelândia, que viviam em zonas virgens, a milhares de quilómetros dos locais onde o produto foi aplicado.

Dizia ela que “ o homem é parte da natureza e que a sua guerra contra a natureza é, inevitavelmente, uma guerra contra si mesmo”. O DDT viria a ser proibido, mas seguiram-se novos pesticidas com novos efeitos secundários, muitos dos quais viriam também a ser proibidos anos mais tarde, e outros vieram e continuam a ser aplicados, tantas vezes de forma criminosa.

A verdade é que as joaninhas praticamente desapareceram e bom seria que tivessem condições para voltar e viver. E ao falar das joaninhas falo de milhares e milhares de espécies, importantes para o equilíbrio do meio em que vivemos e que praticamente foram extintas ou estão em vias disso, pela ação arrasadora do ser humano. Cada um de nós, tantas vezes inconscientemente, contribui todos os dias para a destruição do tal “equilíbrio ecológico” e para a própria sustentabilidade, incluindo a nossa.

Em nome do desenvolvimento, hipotecamos a vida das futuras gerações onde já não sei se haverá meio ambiente com condições para as Joaninhas e tantos outros seres vivos sobreviverem, incluindo nós, no ecossistema de que todos fazemos parte.

Será que o barato … tem gato?

Regressado de Moçambique onde cumpri dois anos de serviço militar, voltei à vida civil quase quatro anos depois de a ter deixado, aproveitando para fazer um breve “repouso do guerreiro” que nunca fui, embora rapidamente tive de procurar o ganha-pão.

Em tempo bem diferente daquele que hoje vivemos, não esperei muito para me tornar funcionário público na Estação Agrária do Porto, onde conheci o engenheiro Macedo, responsável do Departamento de Horticultura, que um dia me levou à Mantex, uma das primeiras fábricas de confecção, instalada junto à estrada Porto-Vila do Conde, para comprar camisas.

De acesso muito restrito e num tempo em que ainda não existiam as “Lojas de Fábrica”, fomos recebidos pelo dono que nos deu livre acesso ao armazém para escolhermos e comprarmos camisas a preços incríveis. Trouxe seis por noventa e seis escudos (menos de cinquenta cêntimos na moeda atual), quando numa loja custariam cento e cinquenta cada uma.

Uns dias depois, aperaltado com uma delas, aproximei-me dum colega e perguntei-lhe: – “Guilherme, gostas desta camisa”? – “Quanto custou” perguntou ele de imediato. –“Dezasseis escudos” respondi eu, inocentemente. Ele chegou junto de mim, apalpou a camisa com um ar de entendedor e disse: – “Vê-se bem que não presta”. Chocado, fingi não ouvir e desviei a conversa.

Alguns dias mais tarde fiz questão de me aproximar novamente dele para que reparasse noutra camisa, igual à anterior mas de cor diferente, e mordeu o isco, dizendo: – “Essa camisa é bonita. Quanto te custou”? – “Cento e cinquenta escudos”, atirei eu para ver a reação. E ele, apalpando novamente o tecido, afirmou com um ar de quem não tinha feito outra coisa na vida: – “Vê-se bem que esta é de grande qualidade”. Não vale a pena contar o resto da conversa com alguém cujo conhecimento sobre a qualidade da camisa, mesmo apalpando o tecido, se baseava só, mas mesmo só, no seu preço.

E a vida foi-me mostrando isso mesmo, que a maioria das pessoas não percebe se um produto é bom ou mau, se o tecido, o cabedal ou outro material é de primeira ou se é refugo, e por isso o preço é o indicativo da qualidade: O caro é bom, o barato não presta.

Contava-me a minha avó que no tempo do volfrâmio, os novos ricos feitos à custa deste, iam à feira comprar fatos, mas nenhum lhes servia apesar do feirante lhes ir mostrando os melhores que tinha. Só quando tirava da carroça um fato de “fioco”, o pior tecido de então, mas tendo o cuidado de “avisar” que aquele era de um tecido “especial” mas se calhar caro demais para as suas bolsas, é que atraia a atenção dos clientes. E o resultado era imediato, compravam dois ou três a preços exorbitantes, porque esses é que eram suficientemente bons para homens como eles. Afinal, o que queriam comprar era “reconhecimento social” e não um fato.

Foi assim que apareceram as marcas, impingidas e gravadas pelo marketing a fogo na cabeça dos consumidores, cuja compra passou a ser uma das condições para “a integração social”. É verdade que desde então, fizeram-se leis para proteger o consumidor de fabricantes ou vendedores sem escrúpulos, mas não suficientes para proteger o consumidor de si próprio. E o caso que relato a seguir, ocorrido numa loja de Lousada, pelo caricato e absurdo, demonstra bem como o homem se tornou escravo e dependente da exibição do dinheiro, presunçoso e poço de vaidades, sem se aperceber, como dizia Francis Bacon, que “os vaidosos são o escárnio dos homens sábios, a admiração dos tolos, os ídolos dos parentes, os escravos das suas próprias jactâncias”. E vamos ao acontecido.

Um homem viu uns sapatos na montra de uma sapataria local e entrou na loja pedindo para os experimentar. Calçou-os, andou um pouco, gostou, elogiou-lhes a qualidade e conforto e disse à senhora da sapataria que ficava com eles. Mas, como tinha de ir à loja do lado (de roupas de marca), pediu para lhos guardar que voltava de seguida.

Realmente apareceu cerca de meia hora depois e a senhora entregou-lhe o saco com os sapatos. Perguntou quanto devia e quando lhe disse “são sessenta euros”, olhou-a com espanto e perplexidade no rosto, o que fez com que ela ainda justificasse o valor como sendo o preço corrente.

Então, o cliente devolveu-lhe o saco e disse-lhe: – “Obrigado, mas já não quero os sapatos. Prefiro comprar uns de cento e oitenta euros que vi na loja do lado…” E saiu porta fora em direção à dita loja… Os sapatos eram óptimos até saber que o preço era … normal. E como ele não era … “normal”, sapatos a preço… normal, apesar de ter gostado deles, não cabiam na sua … (a)normalidade. Para este cliente o que lhe devia ter sido vendido era o fato de “fioco” ao preço de caxemira.

Parece-me que no caso deste tipo de clientes, além da marca que costuma vir gravada nos artigos, também devia vir impresso o preço, em letras gordas e bem visíveis, se possível a tinta fluorescente para chamar mais a atenção e fazer-nos roer de inveja, dando “grandeza” ao ego do felizardo. Até me apetece dizer que, esta obsessão pelo preço na procura de “status social”, no sentimento que isso lhe traz valorização pessoal, imagem e poder, mesmo abdicando de coisas de que gosta e num país desigual como o nosso, devia ser considerada crime, pois é uma forma de agressão social, uma afronta aos milhões de portugueses que passam dificuldades, como era o caso de quem o atendeu e por quem não teve respeito.

Sei que a vaidade já ultrapassou a estupidez há muito tempo, mas este caso está para além da minha compreensão, pelo que fui à minha pequena biblioteca repescar o livro “Filosofia da Vida”, de Will Durant, que já li há muitos anos, para o reler e ver se lá encontro uma explicação para este comportamento, que só confirma o velho ditado: “Quanto mais conheço os homens…”