O valor que pode ter um presunto …

Há “um bom par de anos”, julgo que ainda no século passado, quando ao fim do dia cheguei a casa disseram-me que me tinham trazido um presunto. “E quem foi que trouxe o presunto”, perguntei? “Foi uma mulher”, ouvi como resposta. “Como se chamava a mulher” voltei a querer saber? “Não disse o nome”, responderam-me. “E que disse ela”, insisti? “Para lhe entregar o presunto”. Pedi para o guardarem porque, entretanto, alguém se deveria “queixar”. Mas os dias foram passando e ninguém deu sinal de vida. Quase um mês depois, disseram-me que o presunto estava cheio de bolor e que, ou se comia ou ele ia estragar-se. Nesta situação, pedi para o partirem, distribuir e deixarem-me pouco, por causa da minha tensão arterial. E, para minha surpresa, a “prenda” continuava sem ter “madrinha”.

Entretanto, um velho amigo tinha-me pedido para lhe fazer um favor, não propriamente para ele, mas para uma senhora sua amiga que vivia no Porto e estava “presa” a uma cadeira de rodas, fruto da sua doença, esclerose múltipla, e que não se podia deslocar. Ela era dona de uma quinta agrícola na região e o seu solicitador e procurador, andava à  volta dela a tentar comprar-lha por dez mil contos, mas ela achava pouco e que ele a estaria a querer enganar. Ora, para não se “espetar”, precisava de alguém que lhe avaliasse a propriedade e ele lembrou-se de mim por considerar que eu era de confiança. Agradeci o elogio, pois nos tempos que correm saber que ainda somos de confiança para alguém já é um orgulho, e aceitei fazer à avaliação, tendo-lhe dito que, na primeira ida ao Porto, lhe telefonaria para podermos ir a casa da sua amiga falar sobre o assunto e recolher os documentos necessários. Passadas cerca de duas semanas combinamos, fomos a casa da senhora e recolhi as cadernetas prediais, pedindo para telefonar aos caseiros a avisar que, logo que eu pudesse, passaria por lá para visitar todas as matas e campos da quinta. Tal visita veio a acontecer umas semanas depois, tendo eu recolhido as informações necessárias para fazer a avaliação e um pequeno relatório que lhe permitisse perceber o valor de cada parcela. Depois, quando pude voltar ao Porto, fui visitar a proprietária, entregar-lhe o relatório e dizer-lhe que, mesmo tendo “avaliado por baixo”, o valor mínimo da quinta era de vinte e cinco mil contos. Ela sorriu e disse-me: “Bem me parecia que ele queria enganar-me. Já agora, peço-lhe outro favor: Não se importa de me tratar de vender a quinta”? Acabei por lhe dizer que sim com duas condições: Que definisse qual o valor mínimo que queria pela propriedade e que o primeiro a saber e ser ouvido deveria ser o caseiro, pois poderia estar interessado. Ela aceitou os vinte e cinco mil contos como valor mínimo e concordou igualmente em que eu consultasse o caseiro em primeiro lugar. Depois desta ida ao Porto estive cerca de duas semanas fora e só mais tarde pude voltar à quinta. Recebeu-me a caseira, que já conhecia quando da avaliação, e contei-lhe o meu papel neste processo e aquilo de que a senhoria agora me incumbira. Por isso, estava ali para lhe perguntar em primeiro lugar, se tinha interesse em comprar a quinta. Ela manifestou logo ter interesse na propriedade e então disse-lhe que o preço atribuído era de vinte e cinco mil contos. Ela olhou-me fixamente e respondeu: “O senhor vai vender-me a quinta por onze mil contos”. Nem quis acreditar no que ela disse. Voltei a explicar-lhe calmamente que eu não era o dono, que a dona era a senhoria dela e que fora ela quem definira o valor da quinta e não eu. Eu só fizera a avaliação. Por isso, a quinta custava vinte e cinco mil contos. Mas ela não desarmou e, com convicção redobrada, voltou a afirmar: “Mas o senhor vai vender-me a quinta por onze mil contos”. Eu repeti os mesmos argumentos e mais uns quantos para lhe fazer ver que a quinta não era minha, que não fora eu a definir o preço mínimo e que não podia vender-lha pelo preço que ela estava a dizer. E ela lá continuou no mesmo registo: “Mas o senhor vai-me vender a quinta por onze mil contos”. Eu bem mudava o tipo de argumentação, mas ela repetia sempre a mesma “cassete” de que eu lhe ia vender a quinta por aquele preço irrisório. Às tantas, já farto daquela conversa sem sentido, perguntei-lhe: “Já agora, diga-me lá, porque é que eu lhe vou vender a quinta por onze mil contos”? E com “uma grande lata”, boa dose de descaramento e crédula no que afirmava, ela confessou as suas razões com toda a convicção: “Porque eu já lhe levei um presunto a casa” …

Instintivamente, dei uma gargalhada e respondi-lhe com a exclamação: “Até que enfim que sei quem levou o presunto a minha casa! Deixe-me dizer-lhe que o preço da quinta se mantém nos vinte e cinco mil contos e que só não lhe devolvi o presunto por não saber quem o entregara. Mas, se quiser, pode ir buscar os restos porque já começamos a comer dele antes que se estragasse” … 

Atribuir o valor de catorze mil contos a um presunto é algo de surreal, é uma coisa em que ninguém acreditaria, ainda que se tratasse de um “pata negra”, o rei dos presuntos. Não passa de uma “santa Inocência” e uma grande ilusão, para a qual é preciso ter “muita lata”. Mas, o pior de tudo é que, esta “arte” que começa com o “pode fazer-me o favor de dar um jeitinho” e não se sabe bem onde acaba, instalou-se na sociedade, cresceu, normalizou-se e banalizou-se, passando a fazer parte da nossa cultura e já não há entidades policiais nem justiça capaz de travar tal “epidemia”, que é transversal a toda a sociedade, conforme provam os muitos casos que têm vindo a público e que não são mais do que  a “pontinha de um enorme icebergue”. Não me achando eu melhor nem pior do que ninguém e apesar dos muitos defeitos que possa ter, e tenho, acreditar que fosse hipotecar a minha honestidade e honra a troco deste “tão valioso presunto”, é sinal de um completo engano. Encaixando-se perfeitamente neste contexto, recordo as palavras sábias de um homem íntegro, antigo chefe e velho amigo, já a olhar-me “lá de cima”: “Nesta vida, todos nós nos vendemos. Eu só não sei ainda qual é o meu preço” …