As três mulheres chamaram-me a atenção pela forma acalorada como falavam, duas delas com ar muito preocupado. Percebi depois que uma se chamava Joaquina e manifestava aflição porque “a cabeleireira lhe disse que já não tinha vaga para lhe arranjar o cabelo e, muito menos, para tratar das unhas”. E completou: “Vejam lá vocês como é que eu me vou apresentar depois de amanhã diante das pessoas da minha família, algumas que eu já não vejo há anos? Vão pensar que eu sou para aqui uma pelintra? Não me faltava mais nada! Vou arranjar o cabelo e vou, ainda que tenha de ir ao Porto”. A mais despreocupada, de sorriso nos lábios, entrou na conversa só para dizer que já tinha marcações para a cabeleireira e esteticista há mais de quinze dias, pois não queria correr o risco de não ter vaga como a Joaquina. E a terceira, com ar pesaroso, confessou que ainda conseguira que a cabeleireira lhe lavasse a cabeça, mas já não tinha tempo para lhe fazer os caracóis que ela tanto queria. Falou também em familiares que já não via há muito e que, quase de certeza, estariam lá. Pela conversa, percebi que aquelas três mulheres deveriam ir para algo como um casamento ou batizado, pois agora já não é tempo de comunhões. Apanhei a conversa a seguir já a Joaquina perguntava às outras qual o vestido que iam usar, porque ela comprara na outra semana numa loja em Penafiel um vestido azul-celeste para “fazer ver” às primas de Gaia “quem se veste bem”, pois pensam que por não sermos da cidade “nós somos umas parolas”. A despreocupada adiantou logo que também já estava servida pois no dia anterior foi ao Norte Shopping e encontrou um vestido que lhe “fica a matar”. E a que ainda não tinha cabeleireira para lhe tratar da “crista”, ante o despacho das outras, choramingou: “Eu estive à espera do meu marido, mas como ele nunca tem tempo para ir comigo a lado nenhum, vou ter de me desenrascar à última hora e, se calhar, também vou dar um salto ao Norte Shopping e trato das duas coisas”. Perguntou à amiga a que loja fora e prometeu comprar um vestido diferente do dela. Entretanto fui chegando à conclusão de que devia ser mesmo um casamento e distraí-me a imaginar aquelas “criaturas de Deus” a “cortar na casaca dos outros” durante toda a boda. Só voltei a prestar atenção à conversa quando ouvi falar em flores. Imaginei que fossem flores para atirar aos noivos à saída da igreja, mas fui surpreendido quando uma delas se gabou: “Mandei fazer um arranjo de flores que vai custar cento e trinta euros, mas tem de tudo”. Então, fiquei baralhado: Arranjo de flores no casamento? Para quê? Será para assear o altar? Logo outra retorquiu: “Pois eu vou levar um ramo de orquídeas muito lindo”. Mas a terceira desfez o meu equívoco: “Como sei que vão ser muitas flores pois cada familiar leva um raminho e dá para cobrir a sepultura, encomendei uma coroa de
flores para colocar no meio e desta vez, se falarem de mim, é para me invejar”. Foi aí que se fez luz e percebi que as três mulheres estavam a preparar-se para ir ao cemitério no dia 1 de Novembro, Dia de Todos os Santos. Mas admirei-me da preocupação do trio com os preparativos e a forma de se apresentarem, pois acho que a ida ao cemitério não era propriamente uma passagem de modelos nem um concurso de Miss Universo. A meu lado estava uma senhora amiga que assistiu àquele “filme” e, como mulher, certamente viu mais do que eu. E perguntei-lhe o que é que se estava a passar porque eu não estava a perceber! Mas ela era mulher, “viu tudo” muito bem e “abriu o livro”:
“Lembra-se que depois de amanhã é o dia de Todos os Santos e de ir ao cemitério rezar pelos mortos? Só não deve saber que quase todas as mulheres se arranjam “à maneira” como se fossem para um casamento! Ai daquela que vá com um vestido qualquer e com o cabelo mal-amanhado! Se virem assim alguém, são as familiares as primeiras a criticá-la dizendo “pobre coitada”, “parece uma desgraçada”, “até deixa ficar mal a família”. A maior parte delas nem sequer vai à missa e fica no cemitério a olhar as outras, de soslaio, para avaliar, criticar e dizer mal. A roupa tem de ser nova, sapatos a condizer, maquilhagem completa. As flores devem ser caras e com arranjos espetaculares, já que o mulherio faz uma passagem geral às campas, como os juízes num concurso, a comentar entre si: “Olha que flores tão pobrezinhas”? “Mas que arranjo mais parolo”! “Onde descobriria esta um arranjo tão espetacular”? Só falta mesmo cada uma dar pontos para atribuir um prémio! Mais que o morto, conta a competição entre elas. E o que virem ali, dá conversas para toda a semana lá na aldeia”!
E durante a procissão no final da missa, lá estão no cemitério à espera, mais para se mostrar do que participar, qual passagem de modelos,
com sussurros críticos e sorrisos amarelos. Sabe, mais do que o Dia de Fiéis e Defuntos, eu digo que é uma Feira de Vaidades e Má-Língua. E o curioso é que uma boa parte só vai visitar os mortos uma vez no ano, precisamente neste dia, porque é um ponto de encontro obrigatório e, uma mulher que se preze, nunca pode faltar. E olhe que elas apostam forte: na sua “decoração” pessoal, no que vestem, no que calçam e nos arranjos de flores. Pois o mais importante é aparecer e “parecer”. E os mortos? Pouco importam, são só o motivo para aquele desfile, sendo o cemitério a passerelle”!
A ser verdade que se fez disto uma competição, é uma oportunidade excelente para criar um concurso com categorias diversas, a saber: Melhor Vestido, Melhor Arranjo de Flores, Crítica Mais Contundente e Mordaz, Melhor Maquilhagem, Melhor Penteado. Claro que por detrás de tudo isto está todo um negócio feito à medida destas “necessidades” e que movimenta muito dinheiro, com especulação nos preços porque nisto, ninguém trava gastos, nem regateia. Supermercados, floristas, lojas de chineses e outras, vendem produtos para a ocasião e à porta dos cemitérios os vendedores ambulantes resolvem os esquecimentos, quer seja de flores, lamparinas ou velas. Já poucas são as pessoas que usam flores de casa, pois “até parece mal” e não se pode ficar mal visto em relação ao vizinho do lado. Por isso, há que comprar flores caras para dar nas vistas e sair em grande na boca das outras!
Por princípio, quando vou ao cemitério gosto de silêncio e alguma tranquilidade, e este não é o meu dia preferido para o fazer. Por isso, estava “a leste” da realidade. Mas, para confirmar tudo o que ouvi, resolvi passar em dois cemitérios só para confirmar se havia “desfile de modelos” ou não. E, que Deus me perdoe a intenção com que lá fui, mas tem uma grande dose de verdade. Neste dia um, muitas mulheres transformam o cemitério numa “passerelle” onde se exibem toiletes, penteados e arranjos florais. Pior ainda, a intenção de ir lá para lembrar e homenagear os entes queridos que já morreram, passa para segundo plano, esquecida entre os vestidos e flores, vaidades pessoais e má-língua, e por se perder, transformando um dia que devia ser de memória e respeito por quem morreu, num dia de exaltação, exibição e vaidades sem sentido por quem “ainda” cá ficou …