Nos últimos 50 anos da nossa história, a maioria dos governantes e de muitos outros políticos, tudo tem feito para renegarmos o passado e, especialmente, os grandes feitos alcançados pelos portugueses nos descobrimentos e sua aventura por um mundo até então desconhecido. Chegam a manifestar a vontade de que nos devemos até envergonhar e penitenciar por esse período, que dizem negro, da nossa história, numa inversão completa do orgulho que, como portugueses e descendentes desses antepassados, deveríamos ter. E a verdade é que não estamos a ser dignos dos seus feitos, de atos heroicos que praticaram pelo mundo fora e que hoje querem apagar e subverter, de construções excecionais que deixaram espalhadas pelo mundo e deveriam ser testemunho mais que suficiente da dimensão do que fizeram, sem terem ao seu dispor os meios de transporte, tecnologia, financeiros e científicos de hoje, pelo que se tornam ainda mais extraordinários. Por tudo isso e muito mais,
deveríamos ser nós a glorificar os seus feitos, mas, estranhamente, a exaltação de heroicidade em acontecimentos da nossa história, de vez em quando chega-nos através de vídeos, filmes ou escritos da autoria de não portugueses, a trazer ao conhecimento público factos heroicos que nos querem fazer esquecer. É o caso do chamado Grande Cerco de Mazagão, ocorrido em Marrocos no ano de 1562, em que pouco mais de 3.000 portugueses derrotaram acima de 120.000 marroquinos, resistindo ao cerco e tentativas de assalto à cidadela ao longo de quase 3 meses.
Os portugueses construíram uma cidadela no porto de Mazagão no verão de 1514, que o rei D. João III mandou expandir em 1541 para a maior fortaleza murada que vemos hoje, com 69 canhoneiras e um amplo fosso provido de eclusas que o mantinham cheio de água do mar durante a maré baixa, concentrando aí a presença portuguesa naquela região. Poucos anos depois, Marrocos foi unificado por Maomé Xeque e o seu sucessor cedo começou a planear a conquista dessa cidadela bem fortificada preparando a ofensiva ao longo de dois anos. O governador da fortaleza Álvaro de Carvalho encontrava-se em Lisboa e o seu lugar-
tenente Rui de Sousa de Carvalho através de um espião, confirmou os
rumores sobre os preparativos do sultão. Assim, enviou um navio com um pedido de socorro para Portugal, então governado pela regente D. Catarina perante o cerco iminente, já que a guarnição da cidade e os residentes não seriam capazes de resistir sem ajuda. A 18 de fevereiro de 1562 chegou o primeiro contingente de marroquinos, assentando arraiais ali perto e o filho do sultão, Mulei Moâmede, não concebendo que tão pequeno número de homens pudesse fazer frente ao seu poderoso exército, antes de iniciar o ataque enviou um ultimato ao governador, que dizia: “Tenho tolerado essa fortaleza até à data, mas agora exijo a sua evacuação. Dou o tempo preciso para levarem tudo menos a artilharia e as armas. Se não quiserem aproveitar a minha generosidade tomarei pela força o que me pertence. Não obedecendo, passarei tudo a fio de espada e isso é fácil quanto é certo que Portugal é governado por uma mulher e o rei é ainda uma criança”. A resposta não demorou: “Nenhum português é homem que receie o poder e as ameaças dos moiros; todos saberão resistir e defender a fortaleza do rei-criança, seu soberano, porque todos os que se encontram na praça são portugueses que juraram morrer ou vencer e eles só́ morrem na luta quando deitam por terra os seus inimigos”.
Em Portugal, a rainha regente Dona Catarina ponderava abandonar Mazagão, Mas a notícia do cerco da cidadela provocou uma onda de sentimento patriótico em Portugal e antes que ela tomasse qualquer decisão, fidalgos, plebeus, clérigos, pescadores e outros voluntários, armaram-se e zarparam voluntariamente em auxílio da cidade sitiada.
O inimigo atacava violentamente com cem mil infantes, trinta mil cavaleiros e treze mil auxiliares para escavar e remover terras, com o apoio de vinte e quatro canhões, mas dois meses de combate provaram uma vez mais aos muçulmanos que os Portugueses sabiam ligar as ações às palavras.
Com efeito, a luta começou trágica, terrível e mortífera. O ataque da artilharia inimiga era incessante, a defesa, heroica e infatigável. No dia 30 de Abril, no momento da preia-mar, os Mouros fizeram um ataque violento e conseguiram abrir brecha nas muralhas com a artilharia. Debaixo de um fogo terrível, onde morreram muitos combatentes de um e de outro lado, os valentes defensores de Mazagão escreveram a mais linda página da sua história. Uma explosão de vinte barris de pólvora, provocada pelos nossos, produziu no meio dos sitiantes verdadeira hecatombe. Entretanto, chegavam mais tropas de Lisboa, e o inimigo, cansado da luta, desbaratado e desanimado pela coragem indómita dos sitiados, abandonou o cerco, no dia 17 de Maio, retirando para Azamor. O esforço hercúleo dos defensores de Mazagão manteve ainda por dois séculos a soberania de Portugal na veneranda fortaleza.
Mazagão mantém ainda hoje o seu traçado urbano original e muitas das ruas conservam nomes portugueses como a Rua da Carreira, a Rua Direita, a Rua da Nazaré, a Rua do Arco, a Rua do Governador, a Rua da Mina ou a Rua do Celeiro. O pioneirismo da fortaleza inovadora de Mazagão, peça-chave da evolução das fortificações modernas, abriu a porta à transição para o uso da artilharia, materializa em Marrocos pela primeira vez as novas teorias da fortificação abaluartada, que daqui seriam transpostas para a colonização da América, África e Ásia.
A sua eficácia enquanto estrutura defensiva ficou patente na sua inviolabilidade durante os cerca de 260 anos que serviu a coroa portuguesa. Mas a excecionalidade de Mazagão ultrapassa o simples conceito de fortificação, revelando-se também como um modelo de planeamento e construção da cidade, de transposição para o território de funções urbanas, instaladas segundo determinada escala, de acordo com princípios de racionalidade e sustentabilidade. Serão também estes conceitos da cidade que contribuirão decisivamente para o desenvolvimento do planeamento urbano moderno.
Como diz Oliveira Martins, «o domínio português do Litoral de África é apenas um episódio da grande história das descobertas e conquistas ultramarinas e o seu merecimento serviu de escola para os guerreiros da Índia». A nossa História, aqui e ali, está cheia de atos heroicos, sempre em desproporção numérica, mas com um sentido do que é ser português, irrepreensível. Os portugueses que resistiram e venceram no cerco de Mazagão, não renegaram um passado cheio de ensinamentos e honra. As ordens eram, como sempre foram, para lutar pela honra e pela Pátria! E eles cumpriram! Saibamos nós cumprir, no orgulho e respeito por eles e por todos os outros que lutaram e se sacrificaram para levar Portugal e a civilização aos quatro cantos do mundo …