Estamos a ser colonizados pela língua

A língua portuguesa faz parte dos bens que constituem o património cultural do nosso povo e da nossa nação. É ela que nos permite comunicar os valores, as ideias e até os sentimentos com os outros. Mas, mais ainda, a língua portuguesa é uma identidade cultural dos seus falantes, aquilo que se chama património imaterial e temos a missão de salvaguardar este elemento vital da nossa identidade cultural comum e preservar a essência e alma de um povo. Há um imenso território de vários países comum à língua portuguesa e que nos permite compreender uns aos outros, mas a língua portuguesa que se fala no Brasil é diferente da língua portuguesa que se fala em Portugal e isso revela as nossas peculiaridades e a história de cada povo. E, por mais Acordos Ortográficos que se façam, não há forma de travar a deriva em que o Português Brasileiro e o Português de Portugal entraram, ao ponto de falarmos a mesma língua, mas muitas vezes não nos entendermos, nem sequer compreendermos o que o outro diz. Mas uma coisa é certa: a língua portuguesa é boa para insultar, elogiar, vociferar, gracejar, para escrever belos textos em prosa ou poesia, canções e poemas além das variações nos dialetos e regionalismos que enfeitam o país de norte a sul. É muito bom falar português, escrever em português e de ler, cantar e declamar em português. Fernando Pessoa dizia que “a minha pátria é a língua portuguesa”.

Mas tudo isto vem a propósito de um fenômeno que começou com a chegada do covid-19 e se instalou em Portugal, levando a que os pais de crianças, em especial de tenra idade, por comodidade, desleixo ou falta de atenção, permitam que os seus jovens rebentos comecem por aprender as primeiras palavras, e não só, em Português do Brasil. A verdade é que os pais muitas vezes nem sequer pensam e não se preocupam com isso ou simplesmente não têm tempo e acham que não faz mal colocar nas mãos de uma criança um tablet, computador ou telemóvel com vídeos brasileiros em Português Brasileiro, para os ocupar, para que estejam quietos e calados ou para que não chateiem. 

Em idade tão tenra, as crianças são diamantes em bruto e, tal como uma esponja, absorvem tudo com muita facilidade e intensidade. O “gravador” tem a “fita virgem” e não tem dificuldades em gravar tudo o que ouve. Ora, agarrados aos aparelhos eletrónicos que os pais lhes colocam nas mãos, começam por ver o Ruca, o Panda ou coisas do género, mas rapidamente passam a outros vídeos cuja maioria é de brasileiros, em especial de um tal Lucas Neto, um youtuber com 36 milhões de subscritores. A partir daí, não querem outra coisa, não há forma de os calar seja com o que for que não seja o telemóvel ou o tablet para ver mais do mesmo. E ficam viciados. No princípio, os pais acham piada que as crianças digam palavras ou frases em Português Brasileiro, porque é engraçado, riem-se e assim vão alimentando um problema sem terem consciência de até onde isso os pode levar. E depois, quando acordam para a realidade e querem fazer alguma coisa, já é tarde. Às vezes, são as educadoras de infância ou outros técnicos de educação ou sociais que identificam o problema e dão o alerta, muito preocupadas por as crianças terem o seu discurso todo em “Português Brasileiro” e não dizerem os “r”s nem os “l”s. Dizia a mãe de uma criança pequena, orgulhosa do seu rebento falar tão bem o Português Brasileiro que, por várias vezes, tinha sido abordada por pessoas desconhecidas a querer saber se a família era brasileira, tal era o sotaque da criança. 

Nada tenho contra o Português do Brasil com as particularidades, palavras e expressões que lhe são próprias, como língua corrente lá no Brasil, tal como me parece normal que aqui, em Portugal, se fale, escreva e aprenda o Português cá de Portugal, porque nós somos portugueses e não brasileiros, por quem tenho muito respeito. Mas, como diz o povo, “cada macaco no seu galho”. E nesta questão da língua, temos a obrigação de salvaguardar a nossa e transmiti-la às gerações seguintes, porque faz parte da nossa identidade e da nossa cultura. Mas, o que está a acontecer é que, à conta de muitas horas de exposição a conteúdos realizados por youtubers do Brasil, as crianças aprendem a dizer as primeiras palavras não no português original e com a pronúncia portuguesa, mas com sotaque brasileiro, sendo que muitas delas precisam de “tradução”, caso contrário não vão ser entendidas, como são os casos de chamar “ônibus” a um autocarro, de “grama” à relva, “geladeira” ao frigorífico, “carona” a uma boleia, “bonde” a um elétrico, “listras” às riscas, “van” a uma carrinha, “galera” à malta, já para não falar em “veado”, não ao animal que conhecemos, mas a um homossexual. A uma mãe, só quando o filho no supermercado lhe pediu para comprar “balas” é que o alarme se acendeu e a fez levar o miúdo à terapeuta da fala para ser tratado e a levou a controlar-lhe o acesso aos conteúdos do tablet para que não continuasse a insistir no erro de visualizar vídeos brasileiros. Quando chegam a esta fase, os pais têm de dar mais atenção e tempo à criança e explicar-lhe as razões de tal procedimento e as diferenças.

Se há pais, professores e especialistas que entendem ser um motivo de grande preocupação, pois garantem que existem crianças que mal sabem falar português de Portugal, há quem considere que se trata de uma fase da vida das crianças como aconteceu com as telenovelas brasileiras, ou uma espécie de “colonialismo reverso” para vingar a colonização portuguesa na América. 

O alerta fica para quem se preocupa com os filhos de tenra idade. Como diz a psicóloga Mónica Nogueira, “uma criança que fica muita exposta a conteúdos que não estão na língua que os pais falam, claro que vai aprender o que ouve, seja português do Brasil, seja noutra língua qualquer. Porque os pais usam os conteúdos para ter a criança sossegada, para que coma a sopa ou não incomode a conversa”. E as consequências? Logo se verão …