“Cartas de amor, quem as não tem” …

Agora já só recebemos cartas do banco ou da conta da luz, da água, do gás, da companhia de seguros e outras, mas nenhuma a perguntar como estamos, onde estamos. Já ninguém nos dá muita atenção a não ser o cobrador. Muito menos a atenção de uma carta escrita à mão, de caligrafia exemplar e legível, espaçamento calculado, com as margens delimitadas e um desenho no final. Mas, sobretudo, com mensagens de amor que nos enchiam o coração. Eram as “cartas de amor”. E por isso, as cartas sempre exigiram atenção especial dos designers, pois umas das suas características mais marcantes era o aspeto visual. Ao contrário de um e-mail ou mensagem de texto, uma carta é um objeto físico aguardado, desembrulhado e conservado. 

Num tempo em que a comunicação à distância entre pessoas estava limitada às cartas escritas, por norma à mão, dado que os telefones eram poucos, limitados e caros e os telegramas não eram práticos, as “cartas de amor” eram o recurso para ligar corações. Há 60 anos, uma carta traduzia de forma bem cristalina e clara o estado duma relação e aquilo que outra pessoa representava para nós, se calhar, mais do que mil sms com duas dúzias de caracteres. É que, uma carta de amor expressa os mais puros sentimentos, nutre a paixão e cria memórias que podem durar por toda a vida. As cartas de amor eram sempre portadoras de uma mensagem: Um desejo, uma recordação, um grito, um pedido, de gratidão ou perdão. O artista Francisco Fonseca dizia que “era um tempo em que havia tempo e até se escreviam cartas de amor”. E eram esperadas com uma enorme ansiedade, como dizia o poeta António Nobre numa carta a Cândida Ramos: “Até que enfim. Chegou. Chegou a ambicionada cartinha que era o meu tormento e cuja demora me trazia o espírito doente e o coração sobressaltado. Não imaginas as suposições (…)”. E todos os apaixonados passaram por esse tormento de esperar que o carteiro trouxesse um envelope para si, com aquelas palavras mágicas que os faziam chorar, suspirar e sonhar …

Havia fórmulas clássicas para começar uma carta: «Espero que esta carta te vá encontrar de boa saúde na companhia dos teus (…).» E todas as missivas eram cuidadosamente elaboradas. Carregavam emoções que não conseguiam ser transmitidas por meio de meras palavras faladas, às vezes atadas à timidez do momento, de um face a face. Sonhos, desejos e fraquezas eram rebelados com eloquência. O processo de escolher as palavras com cuidado, construir frases lindas e fluídas e verbalizar emoções, criava uma ligação muito mais forte. Mas a delicadeza de se escrever uma carta de amor acabou.

As cartas de amor guardavam-se no cofre, em caixas arrumadas no sótão, na parte de trás de um armário ou escondidas na gaveta das meias se não fossem muitas, longe dos olhares indiscretos, mas onde se iam buscar para reler, recordar e sonhar. E muitas vezes, em sinal de que a relação acabou, “trocavam-se as cartas” para colocar o ponto final. Há quem as tenha conservado ao longo da vida como se fossem o seu refúgio espiritual, o lugar onde recuperar o ânimo e as forças.

Dizem que devíamos reabilitar as “cartas de amor” como património da Humanidade, admitindo que uma relação amorosa nunca poderá ficar completa enquanto o casal de namorados não trocar entre si algumas dessas missivas. Atualmente temos um conjunto de meios tecnológicos que nos ajudam a comunicar, mas que muitas vezes não nos ajudam a ser mais comunicativos. Mundo estranho e paradoxal este, pois na era da sociedade da comunicação, estamos cada vez mais virados para nós próprios tornando-nos autistas, o que não é um bom presságio quando se trata de estar numa relação amorosa.

A carta deu lugar ao recado digital e por isso, ainda pior que o antigo telegrama, mais descartável. 

Como quase todos os cidadãos que soubessem ler e escrever, escrevi também as minhas cartas de amor. Aliás, não só redigi as minhas como ainda tive de escrever as de algumas pessoas que não o sabiam fazer e eu servia de escriturário, acrescentando aqui e ali alguma frase mais assertiva e romântica que a pessoa não conseguia dizer. E orgulho-me de ter ajudado a unir alguns casais. Aliás, um deles uniu-se de tal maneira que consolidou a sua relação amorosa com relações sexuais antes do tempo, o que nessa altura era coisa “complicada”, sobretudo quando “a barriga começou a crescer”, o que fez antecipar o casamento porque não havia escolha: ou era sim ou sim.

Há muitos anos, Toni de Matos cantava: “Cartas de amor, quem as não tem, cartas de amor, pedaços de dor, sentidas de alguém”. Mas já Fernando Pessoa, em verso, dizia que “todas as cartas de amor são ridículas, porque são cartas de amor”. Será que ele chegou a escrever alguma?

Receber uma carta de amor é um dos grandes prazeres negados às novas gerações que nunca vão saber que essas notas manuscritas, seladas, representam paixões, emoções, um vínculo e podem ser revisitadas. Resta-nos a efemeridade do modo como comunicamos. Venceu o utilitarismo, a informalidade, a realidade nua e crua em vez do charme, do mistério, do talento, da sedução e beleza, da elegância e intemporalidade. Hoje, a alternativa são os e-mails, Whatsapps, Messengers e emojis q.b, mas a informalidade, amistosa para uns, é realmente entediante, para outros. Que romantismo há num “Oi, linda”, “Tudo bem, fofa?”, “Queres curtir?”, “Vamos dar uma queca?” Não são formas primárias, demasiado diretas, despreocupadas e sem espírito de romance ou conquista?  

Graças às cartas de amor que foram guardadas em recantos secretos, filhos, netos e bisnetos vão encontrar respostas para as perguntas que se arrependem de nunca ter feito e os historiadores descobrirão nelas forma de reconstituir o passado e de dar vida a personagens de outros tempos, importantes ou desconhecidas, entendendo melhor como é constante, através dos tempos, a essência da humanidade. E do amor …