Passou mais um dia de Páscoa onde se celebra a ressurreição de Jesus Cristo ao terceiro dia após a sua crucificação e morte no Calvário. Mas a verdade é que, quando era criança, na minha aldeia, e não só, vivia-se a Páscoa com mais fervor religioso. E a tradição ainda é o que era? No sábado, véspera do dia de Páscoa, ao andar por aí, vi muita gente de calças arregaçadas, mangueira com água a correr numa mão e na outra uma vassoura para fazer a “limpeza geral” própria desta época. É a tradição no seu melhor, com os ajustes próprios da melhoria das condições de vida. Se antes se varria o terreiro da casa com uma vassoura artesanal de giestas ou um varrisco de codessos porque o piso era em terra batida, hoje, como o pavimento exterior é em cimento, tijoleira, cubos ou mesmo em placas serradas de granito, varre-se com vassoura ou espanador industrial e quando é necessário lavar o pavimento usa-se a mangueira com água e até a máquina de pressão para retirar toda a sujidade. Pelo contrário, como antes não havia água canalizada, as escadas de pedra eram lavadas à mão, de joelhos, com uma escova grande e sabão azul ou rosa. Duma maneira ou de outra, muitos são os que mantêm a tradição desta limpeza geral “para receber o Senhor”. A tradição determina que essa “limpeza” também se estenda à alma através da confissão e era algo que a grande maioria da população fazia pessoalmente diante de um padre, de joelhos, verbalizando os pecados cometidos, tradição essa que veio a perder importância ao longo do tempo. Parece que a “lavagem da alma” passou a ser menos importante que a das nossas casas … O domingo de Páscoa era uma ocasião muito especial pois começava por ser o “dia das estreias”. Não, não se tratava da estreia de nenhum filme, mas tão somente de roupa nova, fosse uma camisola, camisa, calças ou, melhor ainda, um fato completo. Como as dificuldades eram mais que muitas, quando os pais queriam dar algo novo para vestir aos filhos – e a si próprios – aproveitavam o dia de Páscoa porque a roupa funcionava não só como prenda da época, mas também como coisa útil para a ocasião já que a tradição mandava que se vestisse o melhor fato ou vestido nesse dia de festividade. E o “fatito” servia as duas coisas. Ora, para nós miúdos de então (e até os graúdos), uma roupa nova era razão suficiente para ficar feliz. E ainda me vejo todo vaidoso a exibir a roupa, fosse o fato ou uma simples camisola. Hoje a Páscoa já não é ocasião para estrear fatos, muito menos camisolas, até porque nesse dia a maioria das pessoas veste informalmente. Aliás, já nem há ocasiões especiais para ter de se estrear roupa nova a não ser nos casamentos, porque as mulheres não podem aparecer com um vestido que já usaram num outro casamento. Seria um escândalo … Se antes a maioria das crianças recebia a “rosca” de trigo (regueifa) ou uma simples “pitinha” (a imitar um pintainho) feita da mesma massa e passeava-se todo o dia com ela enfiada no braço pelos caminhos da aldeia porque era um privilégio único ter uma “rosca” só para si, coisa a que não tinham acesso no resto do ano, hoje nada disso tem valor porque a fartura é muita e nem sequer as “roscas de pão de ló” ainda são algo especial … A visita pascal era o momento mais festejado na aldeia. Apesar das casas serem muito modestas, não havia quem não cuidasse de as limpar, arranjar e engalanar para “receber o Senhor”. À entrada da casa espalhavam-se flores e folhas em especial de era, mais tarde substituídas por “tapetes de flores”. Aliás, hoje é uma tradição que se mantém e eu próprio não deixo de apanhar folhas de era no jardim para atapetar a entrada de minha casa, sinal de que quero receber o “compasso”. Se antigamente praticamente todas as casas da aldeia estavam abertas para o receber, além de em muitas delas obrigarem os elementos do grupo a comer e beber alguma coisa, atualmente já são bastantes as que estão fechadas e são tantas mais quanto mais urbano for o meio, pois alguns já não estão para aí virados e outros aproveitam para gozar umas miniférias pascais num qualquer paraíso turístico, dentro ou fora do país, relegando para segundo plano essa coisa de passar a Páscoa em casa. Nas minhas recordações a imagem do “compasso” começa sempre com o tocar duma campainha agitada fortemente por uma criança no caminho entre casas, anunciando a sua chegada. Este ano vinha em dose dupla. A seguir vinha o juiz da cruz com esta nas mãos e era ele que a dava a beijar, tradição que se mantém, só interrompida pela pandemia. E era o senhor padre que nos dizia algumas palavras de saudação e anúncio da ressurreição de Jesus, mas que hoje tem nos acólitos os seus substitutos por força das circunstâncias. E à saída andava alguém com uma cesta para recolher os ovos oferecidos, uma tradição que desapareceu. Há uma coisa que foi aumentando de forma muito significativa ao longo do tempo: os foguetes. Se antes não passavam de uma dúzia ou pouco mais ao longo do dia de Páscoa, hoje, desde o amanhecer até já depois de cair a noite, o foguetório é quase contínuo e o som chega de todos os lados pois não deve haver paróquia nenhuma que não mande as suas bombas, levando a que a minha cadela passe o dia refugiada debaixo da cadeira e até se retraia de ir lá fora fazer as necessidades, pois costuma ser apanhada a meio caminho com novos estrondos, fazendo com que desista e volte a correr para o seu “abrigo” à prova de bomba. A Páscoa é a celebração da ressurreição de Jesus Cristo, ontem como hoje, embora as vivências sejam diferentes. Atualmente vê-se no dia de Páscoa mais o fim de semana prolongado e a oportunidade de sair de casa para descanso ou diversão, enquanto noutro tempo prevalecia o sentido original da celebração, com as pessoas a deslocarem-se de longe ou perto num regresso à casa paterna e o povo em autênticas arruadas atrás do compasso. Mas, apesar de tudo, na província ainda se preserva a tradição, com as alterações próprias dos novos tempos. A Páscoa faz-me relembrar sempre o propósito do sacrifício e morte de Jesus Cristo e a mensagem de que, enquanto vivendo em sociedade e em comunhão com os outros, temos a obrigação de nos sacrificar e sofrer para ajudar os que nos rodeiam sejam eles familiares, amigos e mesmo desconhecidos, de ser solidários, porque um dia destes, e que vem mais depressa do que esperamos, podemos ser nós a precisar do sacrifício, sofrimento e solidariedade de alguém …