Volto a debruçar-me sobre um tema que, quando aqui o abordei, fez com que um amigo me aconselhasse a não escrever mais sobre este e outros assuntos “malcheirosos”, pois não “ficava bem” para a minha condição social. Ora, pelo contrário, acho que os muitos milhares de anos da suposta evolução humana não evitaram que o ser humano continue a ter uma relação de grande pudor com a sua “flatulência” natural, conhecida como “pum” ou “traque” e vulgarmente por peido, fazendo com que o ato de peidar pareça estar condenado a ser para sempre algo secreto, feito às escondidas, vergonhoso e chocante. É curioso que quando uma criança dá um “pum”, toda a família se ri e acha divertido. Daí que ela se exibe perante os pais, tias e visitas, por ter recebido estímulos positivos aos seus “disparos” naturais. Só não sabe o rebento que, à medida que crescer, o que antes era divertido torna-se escabroso, de mau gosto e condenado socialmente. Vejam lá que, só pelo facto de eu falar neste assunto e de usar a palavra peido, vou ferir a sensibilidade de algumas pessoas como aconteceu com o meu amigo. Mas percebo o pudor, fruto do condicionamento social! A flatulência tem gerado piadas, folclore, etiqueta e até tem mesmo sido proibida por lei, mas poucos estudos têm sido feitos sobre ela. Hipócrates considerou que ter muitos gases é mau e recomendava que devem ser libertados e a medicina moderna concorda notando que a retenção é um dos principais fatores da doença diverticular, o que só dá razão de ser ao “alívio” que cada pessoa sente nas cerca de catorze vezes por dia em que os liberta. Entre os que se dedicaram a escrever com humor sobre o caso, temos Geoffrey Chaucer, Benjamin Franklin e Mark Twain. E até Aristófanes. Os romanos tinham uma lei que proibia soltar gases em locais públicos, lei que foi suspensa no reinado de Claudius, o mais flatulento dos imperadores. Em Chagga, na Tanzânia, a punição para soltar gases é menos severa, mas vai dar pano para mangas às feministas: Se um marido se peidar, sua esposa tem de fingir que foi ela e de se submeter à censura. Se não cumprir a sua obrigação de esposa, tem de pagar três barris de cerveja. Coitada da Luísa se esta lei vigorasse em Portugal … No livro a “Arte de dar peidos”, Pierre T. N. Hurtaut para quem peidar era uma arte e o peido bem solto uma arma social, leva o assunto às últimas consequências pois bem lá no fundo quer recordar-nos que, por baixo das rendas e perfumes, nós também temos vísceras como qualquer outro animal e não devemos envergonhar-nos daquilo que somos, mas, pelo contrário, encarar isso com bom humor, até porque, afirma ele, “o peido é uma necessidade da natureza, uma condição de boa saúde que pode e deve ser assumida como uma fonte de prazer, alívio e até de arte, pois dar peidos não custa, custa é saber dá-los”. Hurtaut cita muitos autores clássicos como Aristófanes, Horácio e Cícero entre muitos outros, mas também pensadores atuais para nos lembrar que “um bom peido ou uma sucessão deles, pode ser uma fonte de brincadeira e de prazer, mas também uma arma de guerra ou uma declaração de independência. Além de que “peido dado na altura certo, poderá virar a situação a nosso favor”. A “Arte de dar peidos” é uma ocasião rara para aprofundar o assunto sobre o qual muito pouca gente se tem debruçado, ao contrário de Hurtaut que a esgota em todos os aspetos. E se é verdade que o livro foi escrito contra os sisudos, os preconceituosos e os hipócritas, já para não falar nos que têm prisão de ventre ou diarreia mental, a sua utilidade é inquestionável. Diz que, “o que cheira verdadeiramente mal é o preconceito e a incapacidade de rirmos de nós próprios, das nossas debilidades”. Ou seja, “o que o peido tem de dramático é vir lembrar-nos que somos imperfeitos e mortais. Que algo cheira mal, mas muito mal dentro de nós mesmo ainda antes de morrermos e contra isso só há um remédio: rir, mas rir com arte”. Afinal, vejam só, parte dos gases é formada pelo ar que engolimos. Ou seja, se falas como um locutor de futebol em rádio FM, comes como o lobo preso ou vives com o nariz entupido, tens chances de peidares mais, além das reações químicas que existem dentro de nós e ajudam essa coisa sem forma que, se entrou, tem de sair. Percebo que a culpa pelo peido ser mal visto é das castrações por vivermos em sociedade. Assim, peidar torna-se condenável, como assassinar. Mal se peide e seja ouvido, verá milhares de olhos acusadores. Por isso, não é para admirar que se finja tanto em sociedade. O que determina o som do peido é a velocidade e o maior ou menor aperto do canal de saída. Daí o som poder dizer sobre os hábitos de cada um. E nada de fazer muita força, porque uma coisa pode seguir-se à outra. E quanto tempo se tem para fugir dum peido antes que ele chegue ao nariz? Depende! Claro que há pessoas que dizem nunca se peidar. Ora, se está vivo, peida-se, seja homem ou mulher. Nalguns casos, mesmo depois de morto. E não existe hora certa para o escape funcionar, mas é mais provável de manhã, na que é conhecida por “trovoada matinal”, ouvida em toda a casa. E, já de fato e gravata na empresa, segura-se para não os soltar, com medo que feda, que vá ser o tema das piadas ou até de perder o emprego. Mas se pensa que um peido retido é um peido perdido, engana-se, pois ele volta a reentrar, dissolve-se e solta-se quando sentir a passagem livre. Você nunca o perde, só o adia. Mas não se preocupe porque ainda não há peidos às cores que denunciem o autor, embora alguns participem no estranho “ritual incendiário” masculino de peidar e acender o fósforo para ver se pega fogo, mas um intestino cheio de metano pode ser fatal. Já agora, mas não menos importante, o arroto não é um peido que subiu de elevador. São coisas bem diferentes. O francês J. Pujol ficou famoso pela sua arte e proezas peidescas, pois tinha a capacidade de sugar o ar para depois o libertar e apagar uma vela a 30 cms. Imitava peidos diversos, de uma sogra, de noiva antes e depois da noite de núpcias, roupa a ser rasgada, disparo do canhão e uma trovoada. Com o reto conseguia fumar um cigarro, tocar flauta, imitar galos, cachorros, corujas, patos, porcos, violinos, trombones e rãs. A performance mais aplaudida era tocar “A Marselhesa”. Penso que, se existissem mais “músicos” como ele, poderiam ter feito uma orquestra sinfónica sem instrumentos, mas capazes de tudo, embora tivessem de ficar de “rabo para o ar”, talvez de “cu ao léu” para que o som saísse nítido e cristalino. Esta habilidade levou um cientista a sonhar se não seria possível também usar o reto como instrumento de fala – afinal só faltava o aparelho fonador pois o resto já lá estava: O fole para o ar e as pregas para criar a vibração. Mas é melhor não! Não sendo “assassino” para estrangular os peidos nem altruísta para reivindicar os dos outros; não sendo covarde que, mal os solta, foge do mau cheiro nem fiscal que cheira o cu de toda a gente e nem infeliz por pensar que vão sair gases e sai “coisa sólida”, sinto o preconceito da sociedade sobre uma exigência do nosso organismo e da nossa condição animal. Daí ela aceitar mais as pessoas desastradas do que quem solta gases. Mas é caso para se perguntar: Quem nunca soltou um peido em público, que levante a mão? Como dizia o cartaz: “Não reprima seus sentimentos. Peide feliz”. E “não segure um peido, pois faz mal à saúde”. A verdade é que toda a humanidade está ligada pelo peido, sem olhar a gênero, etnia ou estrato social. É a manifestação humana mais universal, a prova que desmascara as peneiras e desfaz a cagança. E só o riso é a arma perfeita contra o preconceito, faça-se ele acompanhar ou não da música do traseiro. Hurtaut, o poeta dos gases e sábio da flatulência disse: “É vergonhoso que depois de tantos anos a dar peidos ainda não saibas como o fazes e como fazer, pois, há quem peide com classe e há quem se atrapalhe todo. É que dar peidos é uma arte”. Aliás, um dos vários capítulos da mais difícil e exigente das artes: A Arte de Viver.