À medida que os anos passam, depois de subir as escadas de acesso ao andar da casa dos meus pais, mais costumo parar no pátio e olhar a extensa paisagem que se estende à minha frente, cobrindo a aldeia onde nasci, uma boa extensão do vale do Sousa e a encosta que sobe até ao alto da Trovoada por detrás da qual, e bem longe, podíamos, e podemos, ver se há neve no Marão. Apesar de ser a mesma Serra do Marão e as mesmas encostas, montes e vales, hoje a paisagem é muito diferente, não tanto por ter desaparecido a retrete que havia no topo do pátio – um “luxo” no seu tempo – mas por a paisagem estar despida quase por completo das muitas matas de pinheiros e carvalhos que lhe davam uma beleza particular, que já não consigo encontrar nesse casario variado, desordenado e numeroso que veio manchar a ordem natural como nódoas em bom pano, entre campos, quintais e jardins.
Já não encontro aqueles velhos carvalhos de troncos enormes, cheios de musgo verde, mas de uma beleza natural especial, esburacados e com grandes “nocas”, onde em criança procurava apanhar o macho das “cornelas”, nome que dávamos à “vaca-loura”, com muito cuidado para não levar um apertão das suas mandíbulas em forma de pinça.
Já não vejo os pinheiros e os poucos que ainda teimam em escapar à razia nunca chegarão a ser tão grossos e grandes como outrora para dar tábuas de pinho de cerne que duravam mais do que as tábuas de castanho (castanheiro) e eram usadas tanto no soalho como para fazer esquadrias (janelas e portas), num tempo em que a madeira era o único material para as fazer.
Já não vejo a paisagem pintada com as cores de milhares de pássaros de variadíssimas espécies, desde os gaios, pegas, petos, rolas bravas, tordos, chascos, toldeias, boeirinhas (alvéolas ou lavandiscas), cucos, poupas, ferreirinhos, carriças, andorinhas nem nada daqueles bandos de tordos e dezenas de pintassilgos que formavam autênticas nuvens e vinham poisar nas flores dos cosmos que a minha mãe semeava nas traseiras da casa. Hoje por ali já quase só podemos encontrar pardais e melros, pois os outros não conseguiram resistir à destruição do seu habitat natural, ao uso indiscriminado e descontrolado de inseticidas que os “matam como tordos”. Não temos noção do quanto perdemos com o desaparecimento de muita espécie de aves da região pelo seu contributo no equilíbrio ecológico pois são autênticos “semeadores” a espalharem sementes de árvores, como agentes polinizadores, além de reguladores da população das suas presas.
E já não vejo daquele pátio a cerejeira da senhora Emilinha “Séria” e nem os pássaros a irem ali procurar alimento para si e seus filhotes, o que me permitia daquele “posto de observação” segui-los com o olhar para tentar descobrir o ninho, o que era fácil com alguns deles, como os melros, mas muito difícil com outros, como o “chasco”, pois fazia sempre questão de enganar os perseguidores na sua deslocação para o ninho.
Já não vejo os quintais bem cultivados onde estava sempre presente a couve-galega que fazia parte da alimentação diária de toda a aldeia, tanto no caldo verde, caldo de couves esfarrapadas ou para alimentar porcos e galinhas. E até as ramadas, outrora tidas como prioritárias em qualquer quintal para a produção de uvas e daí alguns almudes e até pipas de vinho, indispensável na mesa de qualquer casa por mais pobre que fosse, desapareceram da paisagem e deram lugar a jardins mais ou menos cuidados, quando não a logradouros pavimentados para não dar trabalho ao dono pois já são muito poucos os que ainda cultivam a terra, pois é mais prático “colher os legumes no quintal do supermercado”.
Já não vejo o sarilho, a corda e o balde no poço da casa dos meus pais, poço que ainda continua por lá, mas que não tem a mesma utilidade de quando eu era criança. Nessa altura, se queríamos água para casa tínhamos de a tirar do poço a balde, encher os cântaros de barro que se levavam para a cozinha e dali se tirava água “a coco” para todos os usos domésticos. E muita sorte tínhamos porque grande parte dos habitantes da aldeia ia à mina ou a alguma fonte natural e carregava o cântaro à cabeça até casa, trabalho que ficava normalmente a cargo da mulher. Anos mais tarde o meu pai mandou instalar uma bomba com uma grande roda, mas era preciso “dar à manivela”, fazer girar a roda e acionar o êmbolo para tirar água. Hoje o poço está lá, mas tem um motor elétrico que simplifica o trabalho. No entanto, a água que alimenta a casa vem da rede pública, sendo mesmo obrigatória a sua ligação mesmo que não se use. A água do poço é usada para regar jardim e quintal ou lavar logradouros. E passamos a ter a água como um bem adquirido. Quer chova ou faça sol, basta abrir uma torneira e a água corre sempre. Mas será que vai correr sempre e a podemos desperdiçar como o temos feito?
Já não vejo a minha avó a tirar o cavalo da corte na casa em frente e a colocar-lhe os arreios para o atrelar à carroça carregada de fazendas para vender na feira de Lousada e arredores. Já ninguém se desloca em carroças nem sequer as há a não ser nos museus etnográficos, mas ficaram-me na memória algumas viagens ao lado da minha avó, naquele banco de madeira da carroça, que já era um luxo pois quase toda a gente ia a pé para a feira.
Do pátio da casa dos meus pais já não vejo passar crianças caminho abaixo, a pé, para a escola, muito menos a jogar a bola ou brincar no monte atrás da nossa casa, livres como passarinhos, onde a aldeia toda era o seu mundo, sem pais “à perna” pois cada mulher era mãe.
Do pátio da casa dos meus pais já não vejo a minha aldeia como uma comunidade, praticamente sem muros, de portas abertas, em que as pessoas partilhavam os poucos bens que tinham e as vidas, estavam disponíveis umas para as outras, entreajudavam-se em tarefas como vindimas, desfolhadas, sacha do milho e outras. As casas eram muito simples, pobres e despidas de coisas, sendo a solidariedade o maior bem. Hoje vejo muitas casas excelentes e com todas as comodidades que, outrora, eram tidas por palácios. Mas estão rodeadas de muros altos, alarmes e câmaras de vigilância, para manter os ladrões (e os vizinhos) à distância. Deixou de haver a convivência entre vizinhos (e tantas vezes nem se conhecem) para cada um ficar fechado em si, de olhos fixos na televisão, no computador ou telemóvel, comunicando com quem está longe, mas mantendo longe quem está muito perto. Já não sei se ainda somos um meio rural com os vícios urbanos ou se já passamos a meio urbano com uma falsa ruralidade, despida do bem maior que o meio rural tem consigo: a comunidade.
Por isso, sempre que regresso àquele pátio, tenha saudades da minha terra …
Em tempo: Já o artigo estava escrito quando a minha irmã torceu um pé e foi ao hospital. Engessaram-no, pois estava partido. Ao regressar a casa ao meio-dia, já uma vizinha lhe preparara e levara o almoço. E quando eu ia a sair, uma outra estava a chegar para fazer o mesmo. Afinal, ainda restam alguns bons pedaços da minha aldeia …