Há textos que devíamos ler, reler e gravar na nossa mente para nos servir de linha orientadora e conduta das nossas vidas e fazer com que deixemos de criticar tanto exigindo mudanças nos outros quando devíamos começar por mudarmos nós próprios. É o caso da reflexão que Eduardo Prado Coelho teve a lucidez de nos deixar pouco antes de falecer em 2007 e diz respeito a todos nós, portugueses, e tendo como título “Precisa-se de matéria-prima para construir um país”. Nessa crónica ele dizia que a crença geral no país era de que Cavaco não serviu, tal como Durão Barroso, Santana Lopes e Guterres, além da farsa que foi Sócrates. Se fosse vivo, diria também que não serviu Passos Coelho como não serve atualmente António Costa. Por isso, ele começou a suspeitar muito bem que o problema podia não estar só nessa gente, mas estar em nós, enquanto povo. Nós, como matéria-prima de um país, que exigimos uma coisa, mas praticamos outra. E fartamo-nos de dizer mal da sua falta de transparência e compadrio, do desgoverno e rotura de serviços, mas somos os primeiros a fazer o mesmo porque, lá bem no fundo, somos um povo de Chico-Espertos.
“Porque pertenço a um país onde a ESPERTEZA é a moeda sempre valorizada, tanto ou mais do que o euro. Um país onde ficar rico da noite para o dia é uma virtude mais apreciada do que formar uma família baseada em valores e respeito pelos demais. Pertenço a um país onde, lamentavelmente, os jornais jamais poderão ser vendidos como em outros países, isto é, pondo umas caixas nos passeios onde se paga um só jornal E SE TIRA UM SÓ JORNAL, DEIXANDO OS DEMAIS ONDE ESTÃO.
Pertenço ao país onde as EMPRESAS PRIVADAS são fornecedoras particulares dos seus empregados pouco honestos, que levam para casa, como se fosse correto, folhas de papel, lápis, canetas, clips e tudo o que possa ser útil para os trabalhos de escola dos filhos … e para eles mesmos.
Pertenço a um país onde as pessoas se sentem espertas porque conseguiram comprar um descodificador falso da TV Cabo, onde se frauda a declaração de IRS para não pagar ou pagar menos impostos. Pertenço a um país onde a falta de pontualidade é um hábito, onde os diretores de empresas não valorizam o capital humano, onde há pouco interesse pela ecologia, onde as pessoas atiram lixo nas ruas e, depois, reclamam do governo por não limpar os esgotos.
Onde não existe a cultura pela leitura (onde os nossos jovens dizem que é “muito chato ter que ler”) e não há consciência nem memória política, histórica nem económica.
Onde os nossos políticos trabalham dois dias por semana para aprovar projetos de leis que só servem para caçar os pobres, arreliar a classe média e beneficiar alguns.
Pertenço a um país onde as cartas de condução e as declarações médicas podem ser “compradas”, sem se fazer qualquer exame. Um país onde uma pessoa de idade avançada, ou uma mulher com uma criança nos braços ou um inválido, fica em pé no autocarro, enquanto a pessoa que está sentada finge que dorme para não lhe dar o lugar. Um país no qual a prioridade de passagem é para o carro e não para o peão. Um país onde fazemos muitas coisas erradas, mas estamos sempre a criticar os nossos governantes.
Quanto mais analiso os defeitos de Santana Lopes e de Sócrates, melhor me sinto como pessoa, apesar de que ainda ontem corrompi um guarda de trânsito para não ser multado.
Quanto mais digo o quanto o Cavaco é culpado, melhor sou eu como português, apesar de que ainda hoje pela manhã explorei um cliente que confiava em mim, o que me ajudou a pagar algumas dívidas.
Não. Não. Não. Já basta.
Como “matéria-prima” de um país, temos muitas coisas boas, mas falta muito para sermos os homens e mulheres que o nosso país precisa. Esses defeitos, essa “CHICO-ESPERTICE PORTUGUESA” congénita, essa desonestidade em pequena escala, que depois cresce e evolui até se converter em casos escandalosos na política, essa falta de qualidade humana, mais do que Santana, Guterres, Cavaco ou Sócrates, é que é real e honestamente má, porque todos eles são portugueses como nós, ELEITOS POR NÓS. Nascidos aqui, não noutra parte …
Fico triste. Porque, ainda que Sócrates se fosse embora hoje, o próximo que o suceder terá de continuar a trabalhar com a mesma matéria-prima defeituosa que, como povo, somos nós mesmos. E não poderá fazer nada … Não tenho nenhuma garantia de que alguém possa fazer melhor, mas enquanto alguém não sinalizar um caminho destinado a erradicar primeiro os vícios que temos como povo, nunca ninguém servirá. Nem serviu Santana, nem serviu Cavaco, nem serve Sócrates e nem servirá o que vier a seguir.
Qual a alternativa? Precisamos de mais um ditador que nos faça cumprir a lei com a força e por meio do terror? Aqui faz falta outra coisa. E enquanto essa “outra coisa” não comece a surgir debaixo para cima, ou de cima para baixo, ou do centro para os lados, ou como queiram, seguiremos igualmente condenados, igualmente estancados … igualmente abusados!
É muito bom ser português. Mas quando essa portugalidade autóctone começa a ser um empecilho às nossas possibilidades de desenvolvimento como Nação, então tudo muda …
Não esperemos acender uma vela a todos os santos, a ver se nos mandam um messias. Nós temos que mudar. Um novo governante com os mesmos portugueses nada poderá fazer.
Está muito claro … somos nós que temos de mudar. Sim, creio que isto encaixa muito bem em tudo o que anda a acontecer-nos:
Desculpamos a mediocridade de programas de televisão nefastos e, francamente, somos tolerantes com o fracasso. É a indústria da desculpa e da estupidez.
Agora, depois desta mensagem, francamente, decidi procurar o responsável, não para o castigar, mas para lhe exigir (sim, exigir) que melhore o seu comportamento e que não se faça de mouco, de desentendido. Sim, decidi procurar o responsável e ESTOU SEGURO DE QUE O ENCONTRAREI QUANDO ME OLHAR AO ESPELHO. AÍ ESTÁ. NÃO PRECISO PROCURAR NOUTRO LADO.
E você, o que pensa? … MEDITE”!
Esta autêntica aula e lição de vida é direcionada a todos nós, gente deste país, que corrompe e se deixa corromper, mas exige seriedade aos governantes; que faz do não cumprimento da lei um estilo de vida apoiado na falta de eficácia do sistema judicial, mas quer o país justo, moderno, organizado e seguro; que vive do expediente e do “jeitinho” para conseguir o que deve pertencer ao mérito; que vende a alma ao diabo ao tornar-se “mercenário da política”, mas que só se serve sem sequer servir o país nem é exemplo de integridade e honradez para ninguém; que atirou para a valeta os valores de sempre, mas que os exige dos outros quando lhe convém; que vai “parindo” governantes atrás de governantes, mas mais não são que a imagem da sociedade refletida no espelho com todos os seus vícios e defeitos, pelo que só temos os governantes que merecemos e são o nosso reflexo …
Obrigado Eduardo Prado Coelho pela lição, que caiu em saco roto …