Há algumas décadas a Luísa sofreu um acidente de automóvel grave e foi transportada para o Hospital de S. João, onde permaneceu durante alguns dias e sujeita a intervenção cirúrgica. Quando a visitávamos, queixava-se de uma dor no peito, sintoma que também foi referindo ao médico que a acompanhava. Face à continuação dessas dores, no dia em que lhe deu alta o médico deu-nos um conselho: “Se querem a minha opinião pessoal, recomendo-lhes que a senhora vá fazer uma nova radiografia no Dr. Pinto Leite”, nessa altura uma referência na área de Imagiologia. Mal saímos do S. João, seguimos diretos à baixa do Porto onde ficavam as instalações do radiologista. A Luísa foi logo atendida, fez o exame e pouco depois tínhamos o diagnóstico: “Duas costelas partidas”. Perante a situação, lembrei-me de um ortopedista nosso conhecido com consultório no Porto, para onde seguimos logo. Atendeu-nos muito bem e depois de ver a Luísa e os exames, colocou-lhe uma ligadura bem apertada à volta do tronco, na zona do peito.
Quando regressamos a casa a Luísa continuava a gemer e satisfez-se com a possibilidade de “estar pisada”. No entanto, passou a semana a queixar-se do mesmo. Ao fim de oito dias, disse-me: “E se eu fosse ao sr. Pinto”? Admirado, respondi-lhe: “Já estive para te falar nele, mas como tu normalmente pões em dúvida as suas capacidades” … E, sem lhe dar tempo a arrepender-se, lá fomos a casa do senhor Pinto, que nos recebeu com a cordialidade e simpatia do costume. Informado do que se passou, tirou a ligadura, colocou-se em posição e percorreu as costelas uma a uma com os dedos até parar concentrado. Então disse: “A senhora tem razão continuar a ter dores, pois as costelas estão a soldar sobrepostas quando deviam soldar de topo”, enquanto usava os dedos para mostrar a posição. “E agora”, perguntou a Luísa? “Já começaram a soldar”, respondeu. “Por isso, pode ser um pouco mais doloroso”. Enquanto as mãos seguiam as costelas afetadas, ia falando sem parar, para a distrair. De repente, deu um esticão forte com os dois braços e ela reagiu com um grito de dor, seguido de um suspiro de alívio, enquanto dizia: “Ai, agora já não me dói”!!! E o certo é que não se voltou a queixar mais …
O senhor Pinto trabalhava na Adega Cooperativa de Lousada (daí ser conhecido por “Pinto, da Adega”) onde as nossas vidas se cruzaram quando ali prestei serviço durante duas ou três vindimas e foi fácil tornar-me seu amigo, porque era impossível não se gostar da sua humanidade, simpatia, disponibilidade e humildade genuína. O seu ar tímido e tranquilo, o respeito com que recebia e tratava quem dele se socorria e o dom que possuía na habilidade de mãos e sensibilidade dos dedos escondiam um homem com um enorme coração. Só soube dos seus dotes de “Endireita” durante esse tempo de vivência comum na Adega Cooperativa, embora já fossem muito conhecidos entre a população local pois era normal quando saía do serviço ter sempre à espera gente a precisar da sua capacidade para aliviar sofrimentos. E, depois de um dia de trabalho pesado na Adega, ele estava disponível para atender a todos com o mesmo sorriso tímido nos lábios. Conheci muitas pessoas a quem aliviou o sofrimento, desde simples entorses do tornozelo ao músculo da perna fora do sítio ou ao braço partido. Eu próprio recorri aos seus serviços bastantes vezes, especialmente ao longo dos muitos anos em que joguei futebol e hóquei em campo. E era ele que me aliviava das “medalhas” crónicas deste mau jogador amador, quer fosse no tornozelo, pescoço, dedos, mãos ou ombros. A verdade é que, fazendo uso somente das mãos para manipular ossos, músculos e tendões, conseguiu sempre endireitar-me o “esqueleto”, corrigir posturas e recolocar no sítio os elementos, fazendo com que a dor desaparecesse.
A sua fama passou muito para além das fronteiras de Lousada e do distrito do Porto, passada de “boca em boca”, somente à custa dos resultados do seu trabalho num tempo em que não existiam redes sociais nem as notícias circulavam à velocidade de hoje. Ao longo de mais de seis décadas ajudou muitos milhares de pessoas no rés do chão de sua casa, que faziam fila desde madrugada vindos dos quatro cantos do norte, quando não de outras regiões do país. Cheguei a ver à sua porta um homem curvado por um “mau jeito” na coluna e que veio propositadamente de França, crente de que ele seria capaz de resolver-lhe o problema. E resolveu …
A sua atividade não era bem vista por parte da classe médica, o que é natural, pois não se gosta de “concorrência”, ainda por cima alguém sem habilitações e com “resultados”, embora tivesse muitos médicos que recorriam ao seu serviço pessoal, para si e para toda a família.
Um dia levaram-lhe um homem que caíra abaixo dum carro de bois carregado e em andamento, tendo-lhe uma roda passado por cima do peito. Com paciência, colocou-lhe no sítio todas as costelas partidas e, depois de ligado, recomendou-lhe o habitual repouso e a aplicação de álcool na ligadura. Viria a saber dele já depois de recuperado, porque o homem embebedou-se e foi para a frente da casa do médico que o havia visto depois do acidente, gritando-lhe que era incompetente e exaltando as competências do senhor Pinto …
Além de usar os seus serviços para tratar as maleitas, acompanhei familiares e amigos e assisti a autênticos “milagres”, de resultados imediatos. Com os dedos conseguia “ver” o que os entendidos só viam através de exames radiológicos. E mais. Manipulava ossos, tendões e músculos, recolocando-os na posição correta, eliminando a dor e as consequências futuras, sem intervenção invasiva. Um primo meu que era descrente das suas capacidades, evitou a cirurgia já marcada à coluna ao aceitar entregar-se durante dez minutos nas suas mãos. Só! Manteve sempre a sua humildade e discrição, como se tudo isso fosse natural, evitando falar dos muitos casos que resolvera. Numa das últimas visitas que lhe fiz mostrou-me as pernas cheias de pisaduras negras, resultado de ter atendido dois meliantes durante a noite que lhe tocaram à campainha queixando-se um deles de estar muito mal. Na sua disponibilidade permanente, ao abrir-lhes a porta foi atacado pelos dois que julgaram ser fácil dominá-lo. Porém, esqueceram-se que, apesar de estar a caminho dos noventa anos, aqueles braços e mãos faziam muito exercício diário. Agarrou um pelo pescoço com a mão esquerda enquanto esmurrava o outro. O que estava preso pelo pescoço foi-lhe dando pontapés nas pernas (daí as nódoas negras) enquanto não lhe faltou o ar e o outro, quando conseguiu libertar-se, fugiu. Só largou o primeiro ladrão já fora da porta de casa, inanimado, tendo desaparecido durante a noite sem desejo de voltar.
Não pude acompanhar o senhor Pinto na sua última viagem, mas ele sabe que só algo de imperioso me impediu de o fazer. Mas, enquanto não nos voltarmos a encontrar, fica-me a lembrança de um homem bom, discreto, humilde, apaixonado por Lousada e sem vaidades, que adorava cuidar dos cães e ir à caça, um dia de “descanso” para quem estava sempre disponível a acudir ao sofrimento dos outros.
Tenho uma dívida que não lhe paguei: quando abriu a porta do fundo da Adega Cooperativa para eu entrar no Arraial Minhoto que ali se realizava, satisfazendo o desejo de um jovem adolescente, mas sem dinheiro para pagar a entrada …
Em nome de todos aqueles milhares de pessoas que tiveram a sorte de beneficiar dos seus cuidados e do alívio de sofrimento que a todos trouxe, entre os quais me incluo, um MUITO OBRIGADO. E, em nome pessoal, um grande OBRIGADO por o ter como amigo … e pela borla.