Morreu Roberto Leal, tido como “o português mais brasileiro” para milhões de pessoas e “o brasileiro mais português” por muitos mais. Se durante alguns anos a sua música me “passou ao lado”, tal como a sua figura exótica, não posso deixar de reconhecer que, a partir do momento em que conheci a sua história e a força das suas convicções, passei a ter por ele um respeito acrescido, muito maior ainda quando fui confrontado no meio do Pantanal por um natural do “país irmão”. Tinha ido parar a uma casa nas margens do rio Paraguai levado por um amigo brasileiro que me prometera uma pescaria em grande ao “jaú”, um peixe que atinge mais de duzentos quilos e por lá fiquei durante três dias a “tentar pescar” durante muitas horas seguidas, a comer bem (e beber mais) e a borrifar-me de repelente para escapar ao ataque de milhões de melgas famintas de sangue fresco. À noite, entre um jogo de cartas e cerveja gelada, saíam conversas com a meia dúzia de pescadores idos de vários pontos do Brasil onde se falava de tudo.
E aí, “no meio do nada”, um deles questionou-me o porquê de só haver um cantor português a atingir grande sucesso no Brasil e ser o único grande embaixador da música portuguesa e de Portugal. Fiquei sem saber a quem se referia e vieram-me à cabeça alguns nomes. Mas na dúvida, perguntei: -De quem está a falar? E então fui surpreendido pela resposta: – De Roberto Leal. E desfiou um enormíssimo elogio ao cantor, não só pela sua música, mas também pela forma como soube ajustar-se à cultura brasileira sem deixar de ser um grande promotor de Portugal naquele país. A conversa foi longa e o tema foi o Roberto Leal, como homem e cantor de sucesso por aquelas bandas.
Tudo aquilo que aquele brasileiro me disse naquela noite coincidiu com outras informações que conhecera nos últimos anos e que me levaram a olhá-lo com respeito e admiração. Mais ainda, se tivermos em conta que teve de emigrar para o Brasil na companhia do pai e de mais nove irmãos, para fugir à miséria e à pobreza de Trás Os Montes (e do país), mais concretamente de Vale da Porca. Com onze anos viu-se num país estranho onde teve de trabalhar como sapateiro (e até engraxador) e depois comerciante de doces. Só mais tarde, criando um visual “ao gosto do mercado brasileiro” e com a canção “Arrebita” do António Mafra se viria a lançar como cantor, num sucesso sempre maior, traduzido em cerca de vinte milhões de discos vendidos. “Mais do que música, ele deu conforto a quem estava longe da sua terra e era consumido pelas saudades”, dizia um jornalista …
Profundamente religioso, sempre expressou publicamente a sua fé e o amor pelo país que o viu nascer.
Na “Folha de S. Paulo”, Júlio Maria escreveu: “Mais do que a divindade Amália Rodrigues, mais do que a Mariza, mais do que a Carminho e bem mais do que António Zambujo, Roberto Leal foi quem levou ao mais distante dos quintais brasileiros a música do seu país, num tempo em que o Brasil não consumia nada de Portugal. O Brasil só descobriu Portugal com Leal a partir dos domingos em que ele entrava nos lares dançando o vira com uma desenvoltura de passista de escola de samba. Sozinho, foi ele que abriu as portas do Brasil quando ninguém por aqui queria saber de Portugal”.
Roberto Leal partiu desta vida com o sentimento de que o seu país não foi justo com ele e se esqueceu de reconhecer oficialmente o seu trabalho de “embaixador”. Aliás, o serviço que ele prestou a Portugal é reconhecido por todos os brasileiros, quer se identifiquem ou não com a sua música, que também não entendem como é que num país onde todos os anos se anda à procura de gente a quem entregar uma comenda, inclusive alguns tidos por ladrões e corruptos, ninguém se tenha lembrado do seu nome, se é que não houve discriminação pelo seu visual, pela sua música ou pelo que se disse dele em determinada altura.
Tudo isto para confessar qual a razão de trazer Roberto Leal à liça, aqui e agora. No momento em que a televisão noticiou a sua morte, parei com o que estava a fazer e, quase instintivamente, pensei nele e acabei por lhe pedir que me perdoasse lá do lugar onde a sua alma repousa. Não o conhecia pessoalmente, nunca fui a um concerto seu nem seguia o seu percurso profissional. Também não sou um maluco. Nada disso. Tive um rebate de consciência por ter tido durante uns quantos anos, alguns preconceitos em relação a ele, sem qualquer razão objetiva e comprovada. A minha opinião desfavorável não tinha por base dados concretos, pois nada sabia sobre a sua vida pessoal e só conhecia as imagens que vi na televisão e, eventualmente, alguns comentários do apresentador ou comentador. Diria mesmo que foi uma má primeira impressão e uma reação hostil às imagens de alguém exuberante na maneira de vestir, aos arranjos de músicas portuguesas, sei lá bem. Caí naquele mau hábito de um julgamento apressado e sem sentido. Foi assim que durante alguns anos não “ouvi” Roberto Leal a cantar, mas “vi” alguém sobre o qual tinha preconceitos. Só quando um acaso me deu a conhecer a sua história de vida, tive consciência do quanto eu tinha sido injusto e estúpido ao julgá-lo de forma leviana.
Goste-se ou não se goste da sua música, do seu visual ou da sua cara, há que ter respeito por alguém que, saído do nada, subiu a pulso a escada do sucesso tendo de sujeitar a imagem (e o nome) à exigência da profissão, sem que por isso tenha perdido valores e as referências das suas origens e dos seus.
Junto à fronteira com a Bolívia e ao rio Paraguai, mas longe de tudo e confinado ao espaço limitado de uma casa abrigo de pescadores por “pressão” das nuvens de melgas que esperavam lá fora, ao ouvir os argumentos do pescador brasileiro a favor do “nosso” Roberto Leal colocando-o no ponto mais alto do sucesso luso em terras brasileiras, não tive qualquer problema em pensar que errara. E agora que está num “local” onde, sem continuar a cantar o “Arrebita”, o “Português Brasileiro” ou o “Canto a Portugal”, não irá receber a condecoração que mereceu, espero que os anjos e os querubins o levem tão alto no Céu quão alto chegou no país que o adotou …