Hoje comi uma cabeça de pescada cozida “com todos”, um dos meus pratos favoritos, se bem que, para tirar o maior partido do repasto, obrigo-me a dispor do tempo que for preciso para cumprir todo o ritual. Tudo começou ontem quando fui ao supermercado. Aquelas pescadas frescas (pensamos nós e dizem-nos eles, até porque estão no gelo …) e grandes, foram uma tentação a que não resisti (deixem-me ser sincero: como qualquer bom português, a maior tentação foi a excelente promoção, pois estavam a pouco mais de metade do preço). Pedi para a prepararem logo ali e para cortarem a cabeça “com gola”, um “pescoço comprido” como se lhe viesse agarrada uma boa posta. Dá imponência à cabeça e desafia-me o apetite, além de fornecer uns bons pedaços do lombo, bem precisos para não ficar com fome. É que, as espinhas, não enchem pança. Para começar a função do meu ritual começo por tirar a gema dum ovo cozido, esmaga-la no prato e fazer o molho amarelo com muito azeite, vinagre tinto caseiro, alho e sal. É com esse molho que vou temperando batatas, pedaços de pescada, couve, cenoura e cebola, para lhes dar o meu “gostinho especial”. Então, com muita calma e paciência, vou comendo um pouco de cada um dos componentes e usufruindo da cabeça da pescada, espinha a espinha, “à unha” (como o Zé da Cunha) sem cerimónias, para poder “chuchá-las” bem. Em regra, acabam todos de almoçar muito antes de mim, mas já sabem que eu continuo até porque a demora faz parte do ritual.
Não sei a que se deve este meu gosto, mas penso que é pelo facto de ter nascido ainda no decorrer da segunda guerra mundial e ter sido marcado pela falta de alimentos, o que me obrigou a valorizar cada bocado de comida, muito especialmente se se trata de carne ou peixe, por serem raros. E era por isso que se fazia o aproveitamento integral do peixe, de que sobravam somente as espinhas, depois de estarem “limpas”. Aliás, o que se passava com a pescada também acontecia com a carne. Prefiro as partes com ossos, como é o caso das costelas ou dos “ossos de assuã”.
Enquanto comia a cabeça de pescada, dei comigo a pensar que não conheço nenhum jovem que tenha este prazer, tal como não encontro um que goste da carne com osso ou gordura. Será que os excessos a que estão habituados os levaram a escolher o mais fácil de comer – a febra de carne, sem nada de osso? Será por terem sido “formatados” pela “macdonald’s” e “pizza hut” através de publicidade agressiva e continuada? Será porque cedo impuseram aos seus aquilo que só queriam comer sem que os pais fossem capazes de os educar com “boa boca” e a comer de tudo?
Contra mim falo, que cedi, como toda a gente. É assim que os “nossos meninos” hoje só comem alguns pratos do cardápio, alegando que “não gosto de peixe porque tem espinhas”, apesar da mamã se dispor a retirá-las uma a uma, ou “não gosto de rojões porque têm gordura” ou “não gosto de sopa porque…”
Há dias, uma senhora contava-me muito chocada que, no infantário da sua aldeia, onde trabalha, uma grande parte dos “paizinhos” vai buscar os filhos à hora do almoço para irem comer a casa. E não ficam para almoçar no infantário por uma única razão: as criancinhas não querem comer sopa e até dizem porquê. ”É enjoativa”, desculpam-se elas. “Porque… é sopa”. Ora, como é que “aquelas” crianças, apesar de ainda andarem no infantário, já têm idade para saber o que querem e o que não querem e o que é melhor para elas? É surpreendente que, com tão tenra idade, já tenham adquirido personalidade suficiente para se imporem ao pessoal que trabalha no infantário. E os papás e as mamás, como submissos que são ante o “quero, posso e mando desses pequenos ditadores”, acatam e fazem com que a sua vontade seja cumprida. É que os pais não querem, não podem e não as sabem contrariar. “Deus me livre” dizia um paizinho. “Ficam traumatizadas para o resto da vida”. Dizer-lhes “Não” ou “Vais ter de comer a sopa”, está fora de questão. “É uma violência que não é educativa”, dizem.
Já me tenho visto na cozinha de algumas pessoas onde, quase por norma, é preciso fazer quase diariamente um prato diferente para o menino ou a menina, porque “não gostam”, “não querem”, “isso faz engordar” ou uma outra desculpa esfarrapada qualquer. É que comer a refeição normal de casa é um castigo e está fora de questão. Todos os dias se pergunta ao “pequeno ditador” o que é que ele quer comer. “Um bife com batatas fritas”, quando não um hambúrguer. “Sopa”? Nem pensar … E já agora, porque não ir ao Macdonald’s ou à Pizza Hut satisfazer o desejo de “quem manda”? E já nem falo na comida que fica no prato, como desperdício de um bem valioso que falta a muita gente, com a bênção dos papás. Incapazes de se imporem aos “infantes”, o que se pode esperar deles quando tiverem de os educar quando já adultos?
No Japão, num restaurante de “sel-service”, cada um só se serve com aquilo que vai comer. Só. E comem tudo, sem deixar comida no prato à boa maneira portuguesa. Nenhum alimento pode ser desperdiçado. E não é. Aliás, na educação japonesa, as crianças limpam as suas escolas todos os dias durante quinze minutos, juntamente com os professores, que levou ao aparecimento de uma geração de japoneses entusiasta da limpeza. Se por cá pusessem os meninos (e meninas) a limpar a escola, “caíam-lhes os parentes na lama” e os professores “estavam feitos ao bife” com as crianças, mas muito pior, com os familiares … Por isso, vamos criando a “ganapada” sem regras nem respeito pelas pessoas, pelos alimentos, pelo meio ambiente, pela lei e por tantas outras coisas. E depois queremos adultos responsáveis …