Os melros já há muitos anos se instalaram nos terrenos cá de casa sem sequer me pedir autorização. E, por mim, ainda bem. Ora, alguns foram tomando conta do jardim e fizeram dele o seu território onde são reis e senhores e se impõem aos outros da sua espécie. Fico feliz por escolherem o meu jardim, até porque o melro-preto faz parte da minha infância e, diga-se, da minha cultura. Conhecia-lhe os hábitos, descobria-lhes os ninhos para retirar algum filhote pois, nesse tempo distante, na aldeia era comum ter-se um melro em casa, numa gaiola mais ou menos improvisada. E alguns cantavam maravilhosamente. Recordo-me especialmente de um que o Tónio, empregado da minha avó, criara desde muito pequeno e que reproduzia com perfeição tudo aquilo que ele lhe assobiava, inclusive a música do “Avé Maria” cantada nas celebrações de Fátima. Aqui, todos os anos fazem o ninho numa das sebes ou entre a hera da palmeira, para abrigar os filhotes, garantir a reprodução e assegurar as futuras gerações. É para isso que acasalam e copulam.
Quando hoje estava a olhar o jardim, vi um lindo macho de bico amarelo a fazer a corte à fêmea. O melro eriçava as penas do corpo, fazia uma curta corrida sobre o muro de vedação e parava. E voltava a repetir a cena novamente, à espera de um sinal da sua “namorada”. Entretanto, a jovem fêmea permanecia imóvel no ramo duma árvore ali próxima e assistia às exibições de conquista do candidato a acasalar. E, às tantas, levantou a cabeça e a cauda em sinal de aceitação do pretendente, permitindo que este avançasse para a cópula. A conquista estava feita e a relação foi consumada em poucos segundos.
A evolução humana é entusiasmante, levando o homem a fazer coisas julgadas impossíveis há poucos anos. No entanto, este corre um sério risco de se deslumbrar com tudo o que conseguiu. E, na ilusão desse deslumbramento, esquecer-se que, na sua essência, não passa de um animal. E, apesar de animal especial, tem as necessidades básicas de qualquer outro, precisando também de urinar e coçar-se como outro animal qualquer. Vendo os melros no jardim na fase de acasalamento, lembrei-me de Desmond Morris ao analisar o homem como animal, para ele um “símio nu”. Quando este zoólogo descreve os rituais de acasalamento do homem, divide esse período em três fases: formação de par, pré-copulatória e copulatória. A primeira fase é aquela a que vulgarmente chamamos “namoro”, a segunda é a fase do noivado e a terceira o casamento propriamente dito. No entanto, temos de nos situar no tempo pois o seu livro foi escrito há mais de cinquenta anos e com um contexto social bem diferente dos dias de hoje. Vivi esse tempo em que as regras de cada fase eram bastante rígidas e formais, de tal forma que, sempre que eram ultrapassadas, aguentava-se com as consequências.
Ora, nestes cinquentas anos ou mais, já o mundo deu muitas voltas, aconteceram demasiadas revoluções e até já se discute com vigor o que é um casal e, em consequência, o que é o acasalamento. E, à luz do que é a prática de acasalamento do tal “Macaco Nu” nos nossos dias, inverteram-se completamente as fases em que Desmond Morris dividiu esse período. Os relacionamentos de hoje já começam pela “cópula”, aquela que seria a última fase. Esse passou a ser “o objetivo” imediato do primeiro encontro. Haverá continuidade e segunda fase? Depois se verá. No caso de haver segundo encontro, talvez resolvam tentar a fase “pré copulatória”, que de “pré” já não terá nada, despida de compromissos, “na desportiva”. E se as coisas se proporcionarem, pode ser que, alguns anos mais tarde, passem à “formação do par” … Este é o “novo normal”.
E tudo isto vem a propósito de algumas imagens que correram pelo mundo das redes sociais, recolhidas “nas noites de farra” da Queima das Fitas do Porto. Nas palavras do jovem universitário que filmou e me mostrou no visor do seu telemóvel algumas cenas “bem pouco edificantes”, aquilo era uma pequena amostra do que se podia ver “ao vivo e a cores” no recinto da festa ao longo da noite e à medida que o álcool “encharcava” por completo os corpos dos “festivaleiros” que, naquele estado, não tinham sequer noção do que era ou não diversão. Segundo o relato, o cúmulo acontecia numa das barracas de bebidas onde a malta que por ali passava se deixava “corromper” com a oferta de um ou dois “shots”, desde que aceitassem fazer uma “cena sexual” provocatória e anormal. E, segundo rezam as crónicas, as “exibições” eram todas filmadas, não só por aqueles que “armaram a barraca” como por qualquer mirone com um simples telemóvel, podendo lançá-las nas redes sociais com toda a naturalidade, como foi o caso. E, de repente, alguns jovens “acordaram expostos a nu” em situações degradantes, nalguns casos sem terem nenhuma recordação do que se passou por estarem completamente inconscientes à beira do coma alcoólico, como atores péssimos de um filme pornográfico ordinário, mas muito mediatizado e fazendo passar para o exterior a sensação de que aquela festa é uma orgia coletiva que, penso eu, não é.
Não sei qual será a reação dos pais de hoje ao verem no Instagram a sua filha estendida sobre o balcão de um bar, “em pelo” como veio a este mundo, com os “buracos naturais” a servir de “copo” onde um e outros jovens ébrios “bebem um shot à borla”, dividido “boca a boca” com a “dona do copo”. Será um choque? Ou, pelo contrário, motivo de orgulho por a filha ter virado “artista de cinema”? E que reação terá aquela jovem ao ver-se olhada de lado pelos outros, entre sorrisinhos escondidos sem saber porquê, até que “uma alma caridosa” a avise e faça ver as imagens divulgadas pelas tais redes sociais mundo fora, filmada de “vários ângulos” naquela “triste figura”? Será que vê nisso motivo de orgulho, para melhorar o “currículo pessoal” e a sua vida de libertinagem ou “cai na real” e percebe a vergonha da exposição pública em situação pouco abonatória, o que pode levá-la à depressão e ao isolamento por vergonha?
No acasalamento dos melros o que era normal há cinquenta ou cem anos, continua a sê-lo, com os mesmos rituais, os mesmos objetivos. Pelo contrário, com o “Macaco Nu”, na sua permanente insatisfação, tudo o que era normal ficou fora de moda, o que era comum passou a ser “ultrapassado” e só o que é chocante vende. As orgias desceram à praça pública e a libertinagem ganha asas e voa. Já nem se trata de uma questão de imoralidade, mas de total ausência dela …