Se eu fosse um jornaleiro, gostava que respeitassem o meu trabalho, a minha pessoa, a minha condição. Não gostava de ser ignorado, tido por “coitadinho” ou “um pobre diabo”. Já trabalhei lado a lado com jornaleiros durante horas, dias, semanas e meses, com quem aprendi muito e que me mereceram sempre o maior respeito. Porque foram competentes, responsáveis e dedicados ao seu trabalho, coisa que nem sempre tenho visto noutros trabalhadores de outras profissões tidas por “mais importantes”, sociavelmente mais aceites. Para além do respeito que lhes era devido, tiveram sempre a minha confiança. Porquê? Porque o trabalho do jornaleiro, da empregada doméstica, do trolha ou do lavador de pratos é tão digno como qualquer outro.
Mas, para a sociedade, não é assim. Penaliza, ignora e ridiculariza algumas profissões, a tal ponto que, para lhes retirar esse estigma, muda-lhes o nome. Como se tivesse alguma coisa de ofensivo num “caixeiro”, mudou-se o nome para “empregado de balcão” e agora é moda chamar-se “agente de vendas”. No caso da atual “empregada doméstica”, já foi chamada de “serviçal” e, antes disso de “criada”. A “telefonista” virou “assistente operacional”, o “vendedor” urbanizou-se como “técnico de vendas” e a “empregada de escola” passou a ser “auxiliar de ação educativa”. Mas muitas mais se transfiguraram nos nomes, se bem que aquilo que fazem efetivamente em nada tenha mudado na maioria das vezes. Em muitos casos, fugiu-se ao estigma para o voltar a apanhar alguns anos mais tarde. Mas o povo diz que, “enquanto o pau vai e vem, folgam as costas” …
A senhora trabalhava em algumas casas como empregada doméstica, dando horas aqui e ali para fazer face aos encargos da família. Logo no segundo dia numa das casas, quando entrou ao serviço a patroa mandou-a limpar a cozinha. E, mal deu a ordem, saiu porta fora como quem tem pressa de chegar a qualquer lado. Mal entrou na cozinha para fazer o trabalho, apercebeu-se de imediato de que, em cima da tampa do fogão, estavam espalhados vários anéis e outros objetos em ouro. Embora humilde, a empregada pressentiu que a patroa estava a testar a sua honestidade, até pela forma como saiu de casa a correr e a quis deixar à vontade e verificar se iria aproveitar a oportunidade para “dar o golpe”. Procedeu como a dona da casa ordenou e fez o serviço completo, limpando a cozinha de alto a baixo. Mas deixou a tampa do fogão com os objetos tal como estavam, sem lhe pôr a mão. Mal a patroa regressou, dirigiu-se-lhe e disse: “Minha senhora, a sua cozinha já está limpa. Já agora, tem aqui o pano para a senhora limpar o pó da tampa do fogão, porque não lhe ponho as mãos, para não vir a dizer que eu roubei o que quer que seja”, enquanto lhe foi passando para a mão o pano de limpeza. A patroa percebeu o erro que cometeu e pediu desculpa, alegando que “a gente não sabe em quem confiar hoje em dia e foi por isso que a quis testar”. Mas a reação daquela mulher ofendida, foi firme, lembrando-lhe que estava a desconfiar da sua seriedade à partida, sem que ter qualquer motivo para o fazer. E despediu-se naquele momento.
Seria caso para lhe perguntar: “Se fosse um professor de música que fosse lá a casa dar aulas de piano ao filho também lhe colocava as peças de ouro em cima do teclado para o testar”? Ou nesse já confiava por ser músico? Quer dizer que há profissões que estão na lista das “confiáveis”, ainda que alguns sejam ladrões, enquanto outras não são nada de confiar, mesmo que só tenham profissionais sérios? É uma questão de juízos prévios, de gente “condenada” sem que haja crime nem tão pouco julgamento. Ou melhor, discriminada pela profissão que exerce …
Há empregadas domésticas desonestas? Há, ninguém o pode negar. Mas, em todas as profissões há gente séria e gente desonesta. Em todas. E não vale a pena armarmo-nos em “virgens ofendidas”, como se isso não fosse uma realidade deste mundo. Daquele em que nós vivemos no dia a dia. Mas só não vê quem não quer. No entanto, isso não nos impede de trabalhar todos os dias com empreiteiros, trolhas, advogados, carpinteiros, jardineiros, banqueiros, políticos, artistas, sapateiros, carpinteiros, sapateiros, etc.
Nenhum de nós “testou” a honorabilidade dos banqueiros do BES, BPN, BPP e Banif antes de lhes confiar o dinheirinho que tanto custou a ganhar. Ou testamos? Espalhamos algumas moedas em cima do balcão para ver se eles as metiam ao bolso sem darmos conta? Que eu saiba, ninguém o fez. Confiamos. E fomos roubados à descarada. Então, porque não se dá a mesma oportunidade à empregada doméstica, confiando e esperando para ver se é merecedora dessa confiança? Por ser isso: “empregada doméstica” e não “banqueiro”? Por se vestir com roupa humilde e não aparecer “encanada” num fato italiano feito por medida? Fui roubado (e de que maneira) por alguns empreiteiros e advogados e isso não é motivo para questionar à partida a seriedade dos outros …
Quando aquela jovem e mãe entrou na casa da patroa, professora já aposentada, estranhou por não a ver na sala como era habitual, para controlar descaradamente a sua hora de entrada ao serviço e poder descontar mais tarde um eventual atraso de mais de cinco minutos. Sentiu-lhe o barulho dos passos no andar. Quando ia vestir a bata, ao passar na lavandaria, viu estendido sobre a máquina de lavar um ror de dinheiro, tudo notas de vinte euros dispostas em leque e sentiu-se humilhada na sua dignidade. Revoltada, subiu as escadas e dirigiu-se à patroa: “A senhora tem um maço de notas em cima da máquina de lavar. Deve tirá-las imediatamente, porque está a querer pôr a minha honestidade em causa. E faça o favor de as contar, para ver que eu não retirei nenhuma”. A professora, com ar de fingido esquecimento, respondeu: “Oh, já nem me lembrava desse dinheiro”. “Já agora, para não se esquecer, faça as minhas contas porque não posso continuar a servir numa casa onde desconfiam de mim”, rematou a empregada …
Não soube destes dois casos pela televisão, pelos jornais nem sequer através das redes sociais. Não. Nem se passaram lá longe, onde até parece que não nos diz respeito. Não. Pelo contrário. Ouvi-os eu aqui relatados de viva voz por gente humilde desta Lousada com os olhos marejados de lágrimas. E com razão. Porque foram provocatórios, chocantes, ofensivos. Um atentado à dignidade a que qualquer pessoa tem direito.
E é de uma injustiça tremenda que alguém tenha de estar sujeito a esta hipocrisia, numa discriminação mal encapotada e vergonhosa, que só desonra quem a pratica …