Eu integrava aquela reunião de trabalho com mais de trinta participantes realizada num auditório. Em espaço tão grande para tão pouca gente, ainda por cima ouvindo-se o ruído de fundo do trânsito lá fora em hora de ponta, tinha dificuldade em perceber o que diziam. Uma confusão auditiva. Sentei-me na fila da frente, de perna cruzada e um pouco de lado, por forma a que o som do orador me entrasse diretamente no ouvido. Mas, como não estava a perceber patavina do que ele dizia, às tantas dei comigo com a cabeça virada para o lado e de forma a colocar-me no melhor ângulo, na tentativa desesperada de participar na reunião. Foi quando me apercebi que a mulher que estava a meu lado me olhava com cara de poucos amigos, talvez a pensar que o meu posicionamento fosse para “mirar” os seus “para choques””, aliás bem visíveis mesmo sem ter de procurar o ângulo mais favorável. Corrigi a postura mas, quanto a compreender o orador, nada. O que é que ele disse? Não sei. É a triste sina de alguém que tem “deficiência auditiva”. Ou antes, “que está mouco”…
A partir de uma certa idade, tendemos a ouvir mal o que, dizem os entendidos, se deve a múltiplos factores. A música altíssima das discotecas, os concertos roqueiros e ruidosos, os sons metálicos agressivos a que muitos trabalhadores estão ou estiveram sujeitos durante anos e outros, são tidos como “barulhos nocivos”, que fazem com que as chamadas “células ciliadas” dos ouvidos morram, numa espécie de suicídio (talvez em desespero, por não suportarem as agressões sonoras). Ou, pondo o dedo na ferida: A idade não perdoa… É assim que começam os nossos problemas de audição…
Cá por mim, comecei a notar cá em casa. Quando falavam comigo, como não percebia, respondia: “Hem”? E esperava que repetissem, se possível mais alto e comigo mais atento. E os “Hem” começaram, pouco a pouco, a serem cada vez mais frequentes. Ou então era um “que é que disseste?” ou “repete lá?”. Mas, muitas vezes, nem assim. E vieram os erros: !”Vais ao Porto”? e eu perguntava: “O que é que está torto”? ou um “corra” alterava para “porra”. Mas havia alguns bem piores… E de lá de dentro vinha a pergunta: “Estás surdo ou quê”? E, como continuava a não perceber, perguntava: “O quê”??? É por causa desses desacertos sonoros, provocadores de trocadilhos e absurdos, que se diz “a surdez é cómica e a cegueira é trágica”.
A surdez muitas vezes é um mal incurável, sem reversão, que só tende a piorar com a idade. Quem “gosta de me dar alento e ânimo”, diz que… é o meu caso. Ora, a minha dúvida é saber se vou morrer antes de “ficar surdo como uma porta” ou se “fico surdo como uma porta” antes de morrer. Qual das duas a melhor? Se me deixassem escolher, preferia ficar por cá, mesmo que não conseguisse ouvir sequer o foguetório das festas Grandes… O que até seria uma bênção… Aliás, não ouvir pode mesmo ser um privilégio em muitos casos, para além do foguetório… Quem não gostaria de ver algumas pessoas a falar, falar, mexendo a “queixada” para cima e para baixo, mas sem ter de ouvir o que dizem? Nesses casos, pode-se dizer que “há males que veem por bem”… A surdez também é uma desculpa bem conseguida para nos desligarmos da conversa e nos voltarmos para dentro, envolvidos nos próprios pensamentos. Já dei comigo em reuniões com muita gente e ruído de fundo intenso, totalmente “desligado” por não conseguir “apanhar o fio à meada”. E, se calhar, não perdi nada…
Para quem ouve mal, deveria ser proibido ter conversas em locais barulhentos, onde se cruzam sons diversos em confusão total. Nessas ocasiões, quando não se consegue perceber o que as pessoas dizem, há duas opções: Ou se fica “de bico calado” abanando com a cabeça para cima e para baixo, como um burro, murmurando, sorrindo e mostrando os dentes, fingindo compreender o que o interlocutor está a dizer mas correndo o risco de cair em situações embaraçosas, ou então perde-se a vergonha, assume-se a conversa por inteiro e fala-se sem parar não dando hipóteses ao outro de dizer o que quer que seja, para não ter de ouvir… Melhor, de não ouvir.
Se a mulher nos chateia quando aumentamos o volume de som da televisão e o filho nos pergunta constantemente “estás surdo ou quê?”, é certo e sabido que a seguir vem uma ordem: “Tens de ir ao otorrino porque não andas a ouvir nada”. “O quê”? E nós vamos, para a não “ouvir”… O otorrino enfia-nos um tubo no ouvido e espreita, espreita. Ainda bem que é no ouvido e não noutro buraco qualquer… E muda de ouvido e espeita. Será que vê de um ouvido para o outro? E como enxerga ele com o olho qual a nossa capacidade de ouvir o silêncio? Ou só finge que nos examina porque percebeu logo à entrada que estamos surdos, quando cumprimentou dizendo: “Está bom” e “o quê?” é a nossa resposta? Percebeu logo tudo… E manda-nos fazer um exame com uns auscultadores nos ouvidos. Levantamos a mão sempre que ouvimos um “pi…” e muitas vezes até levantamos a mão só para não parecermos tão surdos quanto somos… No final, mostram uns traços no papel e dizem que perdemos cinquenta por cento da audição. Mas perdi onde? Nem a deixei cair… “Está na altura de usar umas próteses auditivas”, que é uma forma simpática de nos dizer “estás mouco, pá”. E estamos. E investimos em equipamentos, para poder ouvir o que não queremos. Se calhar, mais valia ficar surdo de vez… Mas nada será como dantes e as próteses são o remedeio possível e, em confusões acústicas, não apanhamos uma. Nada a fazer. Por isso, meus amigos, quando me falarem em surdina, do tipo contar um segredo, se o meu ouvido trocar a primeira consoante do “corra”, “lerda”, “luta”, “poder” e outras, para… (não vou dizer, senão dizem que, para além de surdo, também sou mal educado…), provocando um “incidente auditivo”, desde já estão avisados que a culpa não é minha. E nem precisam de me perguntar “estás surdo ou quê?”. Porque, já sabem que vou responder: “O quê”?