Há longos anos, “sem saber ler nem escrever” fui parar ao Hospital/Prisão da Guarda, não como um condenado doente mas de visita a um recluso. E como? Andava a fazer estudos agronómicos e comerciais para a empresa onde trabalhava e cobria uma basta região do interior que ia de Bragança à Guarda. Como tive de passar o fim de semana naquela cidade beirã, fui almoçar com um colega ali residente que, depois do almoço, fez questão que o acompanhasse àquele presídio/hospital, onde ia visitar um amigo.
O preso era o Cardoso. Com mais de sessenta anos, simpático e de trato excelente, viria a proporcionar-me uma tarde agradável. Quem diria!!! Acabada a visita, perguntei ao meu colega porque razão o Cardoso “tinha ido dentro” pois, por aquilo que vira, achava-o um indivíduo afável e cordato. Então ele contou-me a história.
“Ainda não se sabia o que era um telemóvel e até poucos telefones existiam quando o Cardoso chegou a uma aldeia do interior transmontano, acompanhado por outro homem que dizia ser seu ajudante. Carregando um velho teodolito, aparelho usado para efetuar levantamentos topográficos, alguns mapas enrolados debaixo do braço e mais alguns apetrechos, fez constar através do seu “ajudante” que fora destacado pelo Estado para executar o traçado de uma nova estrada. Para começar, assentou o aparelho em posição e apontou-o aos terrenos do homem mais rico da aldeia, não por acaso mas por se ter informado previamente “quem era quem”. E começou a trabalhar… Ao fim da tarde o dono da propriedade apareceu e falou com o “ajudante”: “Já fui informado que estão aqui para marcar uma nova estrada e, pelo que vejo, vai atravessar-me os melhores terrenos de cultivo. Não gostava de ver os terrenos partidos ao meio. Não haverá maneira de darmos a volta a isso e desviar um bocadito o traçado”? O ajudante, fazendo um ar de lorpa, respondeu: “Isso não é comigo. Tem de falar ali com o senhor “engenheiro””… E ele foi falar com o “engenheiro” Cardoso. Este ouviu a sua pretensão com ar muito sério e depois levantou algumas dificuldades porque, “mudar o traçado de uma estrada era complexo e seria necessário mexer alguns cordelinhos”. O proprietário manifestou logo compreender a situação mas dispôs-se a “compensá-lo” pelo incómodo e pelas implicações que isso traria para o projeto. Claro está que, apesar das “muitas dificuldades” que o “senhor engenheiro” foi identificando, chegaram a acordo e o Cardoso embolsou uns contos largos. Resolvido aquele “negócio”, Cardoso e ajudante mudaram-se “de armas e bagagens” para outro local e repetiram o procedimento, apontando a mira aos terrenos de um novo proprietário, também ele senhor de bons teres e haveres e que também se viria a manifestar interessado em que a estrada fizesse um “pequeno desvio” para não atravessar os seus domínios. Mais ainda, também tomou a iniciativa de se propor “compensar” o “senhor engenheiro” dos incómodos que isso lhe viria a trazer… E o “senhor engenheiro”, embora “muito contrariado”, aceitou fazê-lo e voltou a embolsar mais um bom par de contos.
Durante meses e meses o Cardoso e ajudante foram saltando de aldeia em aldeia, sempre com o repetido argumento (mas não gasto) de que se encontravam ali para traçar uma nova estrada e os resultados foram semelhantes e compensadores quanto baste para ambos. Mas um dia, há sempre um dia, o velho teodolito foi orientado à propriedade de um homem rico mas com influências no concelho. Quando soube da construção da “estrada” e que esta lhe iria retalhar os terrenos, meteu os pés ao caminho e foi diretamente ter com o presidente da câmara municipal, seu amigo pessoal, questionando-o em tom exaltado: “Então vomecês vão fazer uma estrada lá na terra, atravessar as minhas vessadas e tu não me dizes nada”? “De que é que tu estás a falar”, perguntou-lhe o presidente? “Da nova estrada que andam a marcar lá na aldeia e que me vai retalhar a propriedade” disse-lhe ele. “Mas eu não sei de nada. Alguma coisa não bate certo”, contrapôs o presidente. E foi a partir daí que a vida do “engenheiro” Cardoso começou a andar para trás… Com o desmascarar da tramoia, depressa se deram a conhecer uma boa parte dos lesados pela dupla de vigaristas. E não se denunciaram todos porque muitos deles preferiram manter o anonimato para, por um lado não serem motivo de chacota e gozo pelo povo (tal e qual como no caso recente cá na região com aqueles que emprestaram dinheiro a juros de dez por cento ao mês mas que deu raia e em que os lesados se calaram que nem ratos…) e, por outro, não serem tidos como corruptores ativos. E, pelo que me disse o meu colega, entre os muitos atingidos estavam pessoas de reconhecido prestígio e importância local, gente com formação superior e fortuna, que caiu na esparrela do Cardoso, homem sem qualquer formação mas afável e divertido, requisitos muito importantes para quem se dedica à vigarice, neste caso à “nobre arte de enganar quem quer sacudir a água do capote para cima dos outros”.
Não voltei a visitar o Cardoso, um excelente “engenheiro” na arte da vigarice. Nem sei se a sua estadia gratuita, com cama, mesa e roupa lavada na “estância hoteleira” onde o conheci, se terá prolongado por muito mais tempo. Só sei que nisto tudo me ficou uma dúvida: Se, além do Cardoso e ajudante, não deveriam também “bater com os costados na prisão” muitos daqueles que “compraram” o Cardoso, “corrompendo-o”, sem se preocuparem por a alteração do traçado da “estrada” por si proposta ir fazer a outros aquilo que não quiseram para si. É que, como diz o ditado, “pimenta no cu dos outros, é refresco”…