A propósito da tragédia no desastre aéreo na Colômbia e que vitimou quase toda a equipa brasileira de futebol do Chapecoense, achei muito interessante a afirmação de Jorge Costa, antigo jogador do Porto, quando disse: “E reclamava eu por uma paragem um pouco mais demorada para reabastecimento do avião, num aeroporto da Namíbia”… É natural. Concentramos tanto a atenção em nós próprios, nos “grandes” problemas da nossa vida, que nem nos damos conta do que se passa à volta e, comparativamente, da pequenez do que nos afeta. Foi assim que também fui apanhado há alguns dias. Andava cá por casa, mal disposto e irritável como se carregasse um pesado incómodo, quando tocou o telemóvel. Era o Zé, meu amigo, companheiro de escola e de curso, atualmente a viver no sul do país. Com voz cansada, desanimada e triste, em poucas palavras deu a entender a gravidade do seu problema: “Já não há nada a fazer. É tarde demais”… Mal o ouvi, “rebobinei” o filme do último mês e compreendi tudo.
O seu filho, com pouco mais de quarenta anos, está a trabalhar em Angola e, há cerca de um mês, veio a Portugal com a família passar uns dias de férias, aproveitando para fazer alguns exames de rotina. Quando foi saber dos resultados, o médico disse-lhe sem rodeios: “Vá a Luanda buscar as suas coisas e esqueça Angola, definitivamente. Tem um problema na tiroide, já com vários gânglios no pescoço”. Quando o Zé soube, foi como se o mundo lhe desabasse em cima. Ele que sempre fora um homem forte, sem medo de enfrentar as dificuldades da vida, sentiu-se impotente ao ver-se à beira de perder o seu único herdeiro. Enquanto o filho foi a Luanda arrumar as coisas, o Zé passou quinze dias sem dormir uma única hora, esgotado e cansado física e psicologicamente. Quando um dia lhe telefonei e me falou disso, tive com ele uma longa conversa tentando chamá-lo à razão, pois não era o momento para desistir. Tinha de ser a força do filho e, para isso, deveria ser o primeiro a acreditar na cura porque as coisas que têm de dar mal, dão, mas muitas há que podemos reverter. É preciso tentar. E acreditar. Dois dias depois a mulher disse-me que valera a pena “ter-lhe dado na cabeça”. Quando o filho regressou, foi para Coimbra ao cuidado do hospital e de um especialista que o mandou efetuar novos exames, mais específicos. Os resultados seriam conhecidos dias depois. Logo que que tomou conhecimento desses resultados, o Zé telefonou-me, dizendo tudo naquelas poucas palavras: “Já não há nada a fazer. É tarde demais”… Percebi o drama mesmo antes de ouvir o resto: “Já está espalhado pelos ossos, pulmões e traqueia. Não dá para operar nem fazer quimioterapia”… “C’um caraças”, dou comigo a pensar. “Oh meu Deus, ajudai-me a ajudar. O que posso eu dizer-lhe num momento destes”? Fiquei calado sem saber que palavras usar para consolar e animar o meu amigo. Não sabia mesmo. Ele “estava na fossa”, revoltado com tudo e com todos, descrente da vida e de Deus. “Porquê o meu filho? Porquê isto com um homem honesto, trabalhador, bom pai? Porque não morrem os bandidos, os ladrões e os criminosos em vez de gente boa como ele”? A revolta era enorme e senti-o desorientado, desprotegido, como se o chão o estivesse prestes a engolir. Mais refeito, fui-lhe dizendo algumas palavras de esperança e ânimo, o que não foi fácil. Não podia desistir do filho. Ainda estava vivo e bem vivo e ninguém sabia quanto tempo ainda andaria por cá. Qualquer um de nós poderia partir primeiro. Por isso, tinha de agradecer todo esse tempo, usufruir cada minuto como se fosse o último, aproveitar para fazer com ele o que, provavelmente, nunca tinha feito. Será muito tempo? Pouco? Será o que Deus quiser… E tinha de continuar a ter esperança na medicina e na possibilidade de se curar. Porque muitos outros se têm curado…
Já depois de ter desligado o telefone, fiquei a pensar na fragilidade da vida e na fraqueza da nossa força. Quando a adversidade nos atinge, afundamos. E se esse alguém é um filho, e ainda por cima filho único como no caso do Zé, vamos ao fundo por completo. Os fortes dão parte de fracos, os arrogantes viram humildes, os entendidos logo passam a ignorantes e os ateus apelam ao Deus em que não acreditam. De uma forma ou de outra, praticantes ou não, nesses momentos “ajoelhamos e rezamos”. Todos. Porque nos momentos difíceis da vida, precisamos de “Alguém” a quem recorrer.
Voltamos a falar depois do plano de combate à doença estar definido. A médica responsável preconizara um tratamento novo de uma injeção mensal. Renascia a esperança. Mas era o filho que o animava e lhe transmitia serenidade e confiança, de tal forma que persistia na ideia de continuar a trabalhar em Angola e vir a Portugal todos os meses para o tratamento. Manifestei ao Zé a minha opinião de que seria um erro enorme andar nesse vaivém, nada favorável à cura e acabei mesmo por falar com o filho, apoiando-o na decisão de dar prioridade à saúde e secundarizar o trabalho. Agora, é esperar. Mas, a semente da esperança está lá e desejo muito que germine e se transforme em realidade. Pelo meu amigo Zé e pelo seu filho. Único. E pela esperança, que deve ser sempre a última coisa a morrer. Tanto neles como em cada um de nós…