O peão, aquele “animal” estúpido e zarolho que só atrapalha o trânsito, atravessa a rua sem avisar e está a mais nos meios urbanos (e fora deles) é, por isso mesmo, o alvo a abater pelos automobilistas quer nos lugares adequados de atravessamento de ruas quer perto ou longe deles. Embora as estatísticas digam que o número de peões abatidos nas passadeiras tem vindo a aumentar, precisamente nos locais onde, supostamente, não deviam ocorrer, ou seja, porque é quando o peão, supostamente, cumpre a lei, há quem considere os “abates” insuficientes para “descongestionar” o tráfego, culpando-se os automobilistas de “maus caçadores”, pouco expeditos a “despachar” essas “peças retiradas do tabuleiro de xadrez”. Aliás, até dizem que o sinal verde do semáforo é uma autorização de abate da “espécie”. Mas os peões não estão em vias de extinção, antes pelo contrário, e o aumento significativo dos impostos sobre os combustíveis não ajudou em tal tarefa. Por tudo isso, é pública e notória a luta entre peões e automobilistas que, nem uns nem outros conseguem ganhar, mais parecendo a guerra entre Israel e os árabes, também sem fim à vista. Os peões, em muito maior número que os seus adversários e, por isso, um “eleitorado” mais “interessante” a quem os políticos têm de dar “mais atenção”, foram marcando pontos ao conseguir que as autarquias colocassem passadeiras e semáforos com apito, construíssem passeios em tudo o quanto é sítio e pusessem grades de proteção nalguns locais, instalassem passagens aéreas para atravessar vias de grande movimento e até elevadores panorâmicos, uma espécie de “abrigos e castelos” de defesa contra o inimigo. Mas, tais conquistas não foram suficientes porque os seus adversários vão ocupando, sempre que podem, tais espaços, ao ponto de ser impossível caminhar nos passeios de algumas ruas com tanta “sucata” a impedir a passagem. Os peões são o “elo mais fraco” desta luta desigual, pois “combatem” desarmados e de mãos vazias contra condutores “entrincheirados” e comodamente instalados nos seus “carros de combate”, tantas vezes esquecidos dos direitos dos outros na sua “pressa” de chegar a lado nenhum.
Se já não é fácil ser peão nos dias solheiros, pior ainda nos dias de temporal com que este inverno nos tem brindado, assolados por chuva intensa e vento forte, mesmo para um peão exemplar daqueles que está bem informado do seu papel e tem preparação física e mental adequada para a luta do dia a dia contra os elementos. A preparação física para enfrentar um dia de chuva é imprescindível pois são duras as provas de “levantamento de pesos” para erguer, abrir e empunhar o guarda chuva, do “salto em comprimento” para transpor as poças e lençóis de água que surgem no caminho e de “esgrimir” o “chucho” aberto contra as rajadas de vento.
E dessa luta contra a chuva e o vento as provas de fracasso são mais que muitas, bem visíveis nos caixotes do lixo atolados de guarda chuvas partidos, virados ao contrário, despojos de uma guerra perdida, fazendo lembrar os milhares e milhares de coletes salva vidas amontoados em lixeiras improvisadas na ilha grega de Lesbos, também eles sinal de uma outra guerra em que todos estamos a perder. Mas tudo isso não basta, não é o suficiente porque, quando o peão pensa que conseguiu “defender-se” razoavelmente bem da chuva e do vento e, sem se cuidar, vira as costas ao maior inimigo, é atingido “à falsa fé”, de lado, por trás ou de frente, muitas vezes sem saber como nem por quem.
Naquele dia eu estava sentado no carro parado na berma, o meu “abrigo” contra a ventania e as bátegas de água que mais pareciam despejadas a balde. Caminhando pelo passeio em sentido contrário e do outro lado da estrada, uma mulher “embrulhada” no anoraque segurava com grande dificuldade um pequeno guarda chuva apontado contra o vento, num equilíbrio precário, manifestamente insuficiente para evitar ser molhada da cintura para baixo pela chuva “em diagonal”. Enquanto observava esta luta inglória, vi surgir um carro no mesmo sentido em que ela caminhava (e pelas suas costas) com velocidade excessiva e, ao aproximar-se, “encostou-se mais à berma” “varrendo” o rego cheio junto do passeio e lançando uma “chapada” de água lamacenta sobre a mulher. Apanhada pelas costas desprevenida, perdeu o equilíbrio e com ele a posição do guarda chuva, fazendo com que o vento o virasse ao contrário e partisse as varetas, deixando-a exposta e desprotegida à chuva que não parava de cair. Enquanto o automobilista prosseguiu o seu caminho estrada fora, indiferente ao que fez e instalado comodamente no seu “posto de ataque”, a mulher, com um ar de desalento, olhou para si, enlameada e molhada de alto a baixo e a sua reação a esta “agressão”, a única de que dispunha no momento, foi um grito de raiva bem lá do fundo: “FILHO DA P…”
Esquecemos demasiadas vezes que todos somos peões muito antes de, também, sermos automobilistas e, até por isso, nos devíamos consciencializar que poderíamos ter sido nós a estar no lugar daquela mulher. Num país civilizado, um automobilista é “um peão com um volante na mão”, isto é, que respeita os outros peões como se fosse ele mesmo. É uma questão de respeito… e a crise não é desculpa.