O meu amigo Flávio vive em Cabo Verde de onde é natural e enviou-me um daqueles textos que nos faz refletir. Por isso, depois de alguns “retoques”, achei que o devia partilhar nestas crónicas para que cada um se reveja no que lhe diz respeito. Aí vai.
“Alguns anos depois de ter nascido, meu pai conheceu uma Estranha, recém chegada à nossa pequena cidade. Desde logo ficou fascinado por esta encantadora personagem e, pouco depois, até a convidou a viver em nossa casa, com a família.
A Estranha aceitou e, desde então tem permanecido lá em casa. Enquanto fui crescendo nunca me interroguei sobre qual o lugar que ela ocupava na nossa família mas, na minha mente jovem, já tinha um lugar muito especial.
Meus pais eram os educadores… complementares, tendo a mãe me ensinado a diferença entre o que era bom e o que era mau, enquanto o pai me ensinou a obedecer. Mas, a Estranha era a nossa narradora, a contadora de histórias. Mantinha-nos enfeitiçados horas a fio com aventuras, mistérios e comédias. Tinha sempre resposta pronta para qualquer coisa que quiséssemos saber, fosse de política, história, ciência ou qualquer outro tema. Conhecia tudo do passado, do presente e até conseguia predizer o futuro!!! Foi ela que levou a nossa família pela primeira vez a um jogo de futebol e sabia fazer-nos rir ou chorar.
A Estranha nunca parava de falar e o meu pai não se importava. Mas a minha mãe levantava-se muito antes de nós, calada e metia-se na cozinha à procura de paz e tranquilidade (agora interrogo-me se ela terá rezado algum dia para que a Estranha se fosse embora), enquanto o resto de nós ficava a ouvir o que ela tinha para dizer.
O pai dirigia o nosso lar segundo certas convicções morais mas a Estranha nunca se sentia obrigada a cumpri-las. As blasfémias e os palavrões, por exemplo, não eram permitidos lá em casa… nem por nós, nem pelos amigos, nem por qualquer um que nos visitasse. Mas, a nossa visitante de longo prazo usava linguagem imprópria sem qualquer condicionamento, que às vezes até me queimava os ouvidos, fazia o meu pai retorcer-se na cadeira e a mãe corar de vergonha.
O pai nunca nos deu autorização para tomar álcool mas a Estranha animou-nos a experimentar e a beber com regularidade. Mais ainda, até fez com que o cigarro parecesse giro e inofensivo, e que os charutos e cachimbos fossem um símbolo de distinção. Falava livremente (talvez demasiado) sobre sexo e com comentários umas vezes evidentes, outras sugestivos e, geralmente, vergonhosos.
Agora sei que os meus conceitos sobre relações foram influenciados fortemente durante a minha adolescência, pela Estranha. Repetidas vezes a criticaram mas nunca fez caso dos valores de meus pais tendo, mesmo assim, permanecido no nosso lar.
Passaram mais de cinquenta anos desde que a Estranha veio para junto de nós, tendo mudado muito pois já não é tão fascinante como era no princípio. Não obstante, se hoje entrasse na casa de meus pais, ainda a encontrava sentada em seu canto esperando que alguém queira escutar suas conversas ou dedicar seu tempo livre a fazer-lhe companhia…
Seu nome? Ah, seu nome…
Chamamos-lhe TELEVISÃO!!!
É isso mesmo, a Estranha chama-se TELEVISÃO!!!
Atualmente tem marido, a que vulgarmente chamam… COMPUTADOR. Também já lhes nasceu um filho a que deram o nome de… TELEMÓVEL e até se tornaram avós de uma criança batizada de… TABLET.
Agora, a Estranha tem uma família sua…
E a nossa, será que ainda existe?”
Cá por mim, dou a mão à palmatória porque já me apercebi há alguns anos dos erros que cometi ao aceitar essa Estranha em minha casa… sem regras. E, não só o fiz, como cheguei a convidar mais algumas irmãs suas… Mas ela só “fala, fala”, se não formos capazes de lhe “cortar a palavra”, sempre que necessário… O problema existe pela grande dificuldade que temos, não de lhe impor regras a ela mas de as impormos a nós próprios e aos nossos. E essas regras só têm possibilidades de vingar se começarem a ser cumpridas… por nós. Porque, sem o exemplo, como poderemos fazer para os nossos filhos as cumprirem?
Diz-se que o amor, mais do que o sangue, é o “cimento” que une os membros da família, sem o qual esta se desfaz. O diálogo e o fazer coisas juntos são componentes importantes desse “cimento”, pelo que devem ser usados com regularidade e sempre que necessário, para manter a capacidade de “colagem” e eliminar as “impurezas” que nele se intrometem. Num tempo em que a família tem tão pouco tempo para si, esses momentos, como as refeições e outros, têm de ser seus, sem que seja permitido a intromissão da Estranha, devendo ser “calada” e ceder o lugar e a primazia.
Seremos capazes de gerir o comando e manter o controle total sobre a Estranha para podermos ser donos das nossas vidas… e de termos verdadeiramente uma família?