Na vida, não importa a partida nem sequer a chegada mas sim a caminhada e a forma como caminhamos, até porque começamos e acabamos solitários e nus. E ao longo dessa caminhada usufruímos de uma imensidão de coisas que não valorizamos no dia a dia, porque as consideramos adquiridas, naturalmente, e de cuja real importância só nos apercebemos quando nos faltam, como o abrir uma torneira e termos água corrente, o fazermos da noite dia com o simples click de um interruptor de eletricidade, termos um corpo e mente sadios, sem limitações.
Nessa caminhada, se alguns sofrem por terem limitações físicas ou mentais, de nascença ou resultantes de acidente ou doença grave, há quem não as tenha (muitas vezes aparentemente) mas possa ter sentido a dor de ser maltratado, negligenciado, abandonado, de ter uma família desestruturada, ter perdido os pais ou os irmãos ou passado por outras experiências difíceis, cada uma pior que a outra.
O sofrimento é universal e terrivelmente cruel mas, mesmo nos locais onde ele é mais impiedoso, há pessoas que sobrevivem, prosperam, são felizes, alegres e cheios de fé. Ao ver certas imagens, interrogo-me como é possível que crianças tão pobres ou tão doentes ainda possam sorrir.
Hoje penso naqueles que têm uma deficiência, uma doença crónica ou degenerativa e nas diferentes formas de como lidar com isso. Às vezes, erradamente, pensa-se que quem está nessa situação deve ser uma pessoa zangada, introvertida, parada, irritada, para além de deprimida e solitária. É que ninguém escolhe ter uma deficiência ou uma doença grave. Mas pode, apesar disso, escolher viver sem que essas limitações físicas sejam a razão principal da sua vida. E, se escolher ser feliz, tudo é mais fácil e o “fardo” fica mais leve.
Não há dúvida de que a vida muitas vezes parece cruel, quando as marés de azar se sucedem umas às outras e não conseguimos enxergar uma saída, por mais estreita que seja. No entanto ela existe, mas depende de cada um de nós: Se ficarmos sentados à espera que aconteça, não sairemos do lugar e nunca a encontraremos. Temos de nos levantar, sacudir o pó, abanar a vida e seguir em frente.
Muitas das pessoas com limitações físicas dão-nos grandes lições ao descobrirem e praticarem o segredo da vida feliz: Aproveitar cada dia e vivê-lo como se fosse o último, apreciando cada momento, cada acontecimento por mais simples que seja, como ver no nascer do sol algo de extraordinário, digno de ser apreciado.
Stephen Hawking, conhecido como o homem da cadeira de rodas e que não consegue falar, tornou-se um reputado cientista e é uma das pessoas mais inteligentes do mundo, provando que “não se pode julgar um livro pela capa”. Jamais as limitações físicas tornaram a pessoa pior ou menos impressionante, como o provam muitas outras personalidades de que destaco Hellen Keller.
Verdade é que, perante as adversidades há quem opte por se tornar numa pessoa amarga, raivosa e triste e de viver morrendo. Mas há quem opte pelo contrário, pela vida, por ser feliz e aproveitar cada momento. Foi isto que o Né fez.
Antero Jorge, conhecido carinhosamente por Né, nasceu afetado pela “distrofia muscular de Becker”, doença rara, degenerativa, que leva a uma fraqueza muscular generalizada e que afeta sobretudo crianças do sexo masculino. Progressivamente e de forma irreversível, foi-lhe afetando o tecido muscular, limitando-o fisicamente, pouco a pouco, até o atirar para uma cadeira de rodas e um prolongado sofrimento.
Conheci o Né há mais de vinte anos quando veio trabalhar para o Lar da Misericórdia de Lousada, já apoiado em duas canadianas para se deslocar, mas revelando uma vontade enorme de ser útil. Sendo que a vida sem um propósito não tem esperança e a vida sem esperança não tem sentido nem fé, desde logo fez do trabalho na Instituição o seu propósito de vida. Nas limitações que a doença lhe ia impondo, podia ter escolhido entre o entregar-se ao desânimo, render-se e deixar-se derrotar, ou lidar com essas limitações da melhor forma possível, optando por aprender com a experiência e seguir em frente, assumindo a responsabilidade da própria felicidade. E foi isto que fez quando descobriu como é bom viver.
Nunca encarou a doença como uma sentença de morte em vida ou uma incapacidade para qualquer coisa, pelo contrário, não se privou de conduzir, conviver com os amigos, ir à bola, fazer o que gostava. A Misericórdia era o seu “paraíso”, o seu refúgio, o seu reino, porque ali sentia-se útil ao dar-se aos idosos, tinha uma missão que adorava.
Fez amigos, muitos amigos, nalguns casos “irmãos e irmãs que não de sangue”. Muitos deles entre os funcionários que o “adoptaram” no coração, denunciados agora pelos rostos banhados pelas lágrimas quando se fala do Né.
Sabemos que ele gostaria muito de andar, correr, jogar a bola e fazer outras coisas que lhe dariam prazer. Com a doença, as coisas são mais difíceis, mas não impossíveis pois quem determina até onde vão os nossos limites, é a nossa cabeça. Por isso valorizou o milagre de estar vivo (de que tanto nos esquecemos), a família, os amigos e a Misericórdia, encontrando a felicidade dentro de si.
Há imensas pessoas, de corpo perfeito e excelente saúde, que não conheceram nem conhecerão, metade da felicidade que o Né conheceu porque, a verdadeira deficiência é aquela que limita o ser humano por dentro e não por fora.
O Né partiu mas deixou-nos o grande legado do seu exemplo, uma lição de vida feita de coragem, amor e humildade contra o estigma da doença e das limitações que esta lhe quis impor. Mostrou como a vontade pode vencer o sofrimento, atravessando a fronteira da dor, tal como o maratonista para chegar à glória.
Na família, nos amigos e nos que o conheceram, fica a saudade, a dor e a tristeza da sua ausência, mas deve ficar também a certeza que viveu plenamente o tempo que lhe foi concedido.
Saibamos despirmos do nosso egoísmo, de não querermos suportar o sofrimento que cada um sente, tendo consciência de que, o início do nosso pela sua partida deve ser relevado pelo fim do seu, que terá sido violento e terrível nos últimos dias de vida. E reste-nos a consolação de que, à sua chegada ao Céu, foi recebido com uma festa de “arromba” organizada pelos Anjos, para celebrar o regresso de um… dos seus.