Ao acaso Na Crise sem festa, as festas sem crise Bessa Machado Da minha passagem por Angola há décadas atrás, uma das imagens que retenho é a dos funerais dos nativos.
Reuniam a família que vinha de todos os lados e passavam o dia a cantar, a beber vinho de garrafão de “capacete”, resultando sempre em bebedeira coletiva. Seria para festejar a vida do defunto ou por ter ele ido “d’esta para melhor”? A bebedeira era para esquecer a morte ou a morte o motivo para a bebedeira? Nunca o soube.
Anos mais tarde nas minhas andanças pelo desporto automóvel, desloquei-me à Bélgica para assistir a uma prova de ralicrosse. No domingo fui a um restaurante local e, ao lado da sala onde almoçava, havia um grande salão cheio de gente em traje de cerimónia, num grande banquete fervilhando de alegria e boa disposição. Por mera curiosidade perguntei ao organizador que me acompanhava, se aquilo era um casamento. “ Não, não, é o funeral de uma pessoa importante cá da cidade”, respondeu-me ele.
Já não havia muita coisa que me surpreendesse, mas achei estranho que a vigília da morte fosse motivo de festa. A minha cultura dizia-me que era um momento de tristeza pela partida de alguém, um silêncio de respeito pelo falecido. Quem estaria errado?
Reza a lenda que em 1245 o castelo de Celorico da Beira foi cercado por D. Afonso III, cerco esse que se mantinha há muitos dias na tentativa de que se rendessem pela fome. Quando os sitiados já quase nada tinham para comer, uma águia, ao sobrevoar o castelo, deixou cair uma truta que apanhara no rio Mondego. Ao ver na truta uma dádiva do céu, o alcaide mandou cozinhá-la, prepará-la com esmero e, quando todos pensavam que a ia comer, enviou-a aos inimigos que o cercavam, com o recado de que além de bons guerreiros também tinha bons mantimentos como aquele que lhe estava a oferecer. Perante truta tão apetitosa, os soldados do rei convenceram-se que lá dentro estavam bem abastecidos e levantaram o cerco. Como é que o alcaide, com o último manjar que lhe restava, conseguiu iludir os inimigos?
No Porto não se festejou a passagem do milénio com fogo de artifício como o fez a Câmara de Lisboa e um coro de críticas levantou-se na cidade contra o presidente de então. Face a esse descontentamento popular, na noite de reis houve uma sessão de fogo que terá custado uma fortuna, passando então o presidente de besta a bestial. Esqueceram-se os portuenses de um pormenor: Ele só queimou o dinheiro dos munícipes, não o dele.
Tenho acompanhado o fulgor e brilhantismo das festas da região, sabido dos orçamentos record de algumas e assistido às prolongadas sessões de fogo de que a minha cadela não gosta nada.
As Festas de Lousada são disso exemplo e não me recordo de um programa tão arrojado, completo, mobilizador e caro como nas deste ano, pelo que são devidos elogios à Organização, cujo empenho foi excepcional, elevando a fasquia a um nível muito alto, provavelmente demasiado alto. “Mas em que é que tudo isto está relacionado”, pergunta o leitor já aborrecido? É que, por mero acaso, enquanto decorriam algumas das longas sessões de fogo, estava eu a ver na TV debates, comentários ou mesas redondas sobre a grave situação económica do país, sobre as medidas de austeridade a que estamos sujeitos e as que ainda estão para vir, e dei comigo a pensar em como reagiria um “troikano” (habitante do planeta Troika) ao assistir a uma destas romarias.
Parece que o estou a ver de boca aberta e olhos arregalados, meio zonzo como quem não acredita no que vê, interrogando-se se este é mesmo o país que está à beira da falência e que só consegue pagar pensões e salários a funcionários públicos com o dinheiro do cheque vindo do seu “planeta”, que tem de continuar a fazer cortes de milhares de milhões de euros, enviar mais gente para o desemprego, com mais austeridade e pior nível de vida.
E, saindo do torpor em que se encontra, deve perguntar-se: “Mas será que estes patuscos estão mesmo em crise”? Sem beliscar o trabalho e a vontade de ir mais longe dos festeiros, a pergunta impõe-se: Estando nós já com o estatuto de “falidos”, numa espécie de “morte económica”, as festas não serão como que uma “grande almoçarada”, como no funeral na Bélgica, num hino à vida na vigília da morte? Ou então uma “bebedeira geral” para esquecer (com muitos jovens realmente bêbados) como nos funerais em Angola? Ou a “truta cozinhada com esmero” enviada a credores e mercados, para os convencer que estamos bem de vida e, por isso, podem levantar o cerco dos juros altos e dormir descansados porque lhes vamos pagar (se não for nesta vida é noutra)? Ou ainda uma “anestesia geral”, para não termos qualquer tipo de reação ao empobrecimento diário? Ou será que é mesmo assim que o povo quer, como no caso do fogo de artifício no Porto, pois com crise ou sem crise, como é ele sempre quem paga, pelo menos que haja festa?
Devemos manter as tradições a todo o custo, porque são parte da nossa cultura, aquilo que nos distingue neste mundo fotocopiado. No entanto, percebendo o bairrismo, orgulho e vontade dos festeiros em querer ir sempre mais além e vendo a continuada generosidade do “Zé”, o bom senso exige moderação e contenção nos gastos para sermos coerentes, devendo o esforço festivo ser proporcional à situação real do país e de cada um de nós. Senão, depois da “almoçarada”, um dia destes adormecemos todos com a “bebedeira” e não acordaremos mais, nem sequer com “as sessões de fogo”, por maiores que sejam as “girândolas”…