Dos sete filhos daquela senhora que enviuvara muito cedo e tudo fizera para os criar com dignidade, só a Maria deixou o emprego para se dedicar à mãe a tempo inteiro quando lhe foi diagnosticada uma doença grave. E, apesar da sua fraca condição económica, assistiu-a na doença e dela cuidou com uma dedicação inexcedível e um amor infinito, suavizando-lhe o sofrimento durante os poucos anos que ainda viveu. Dos outros filhos? Algumas visitas esporádicas para não parecer tão mal, embora breves, talvez “para não pegarem a doença”. A mãe foi a enterrar em campa rasa própria e, a partir desse dia e até hoje, ao longo de mais de vinte e cinco anos, tem sido exclusivamente aquela filha Maria que dela cuida e enfeita com flores. E semana após semana, mês após mês, ano após ano, sempre que consegue usando flores oferecidas e, quando não, compra-as com algum dinheiro do seu parco salário. Nunca confrontou nenhum dos outros filhos com o dever que também lhes é devido de homenagear a mãe, nem deles exigiu o que quer que seja para o efeito. E esta mulher, que carrega sozinha esta “empreitada”, sem qualquer proveito pessoal a não ser a satisfação do dever cumprido para com quem a “trouxe ao mundo”, ao fim de vinte e cinco anos foi questionada e confrontada por alguns deles, acusando-a de se ter apoderado pessoalmente da campa como se a tivesse roubado, quando afinal o título daquela “propriedade” está, e sempre esteve, na posse de um dos irmãos e é a prova de que pertencia à mãe e, agora, a todos os sete filhos, mesmo que dela não tenham cuidado. Desolada, desabafava comigo por não compreender como era possível que ao fim de tantos anos, irmãos e irmãs, sangue do mesmo sangue, tenham levantado suspeitas sobre a honestidade dela e insinuar que os seus interesses seriam outros que não os de “cuidar da campa da mãe” desinteressadamente. Conhecendo bem como conheço este caso, diria que, se os irmãos e irmãs da Maria tivessem “um pingo de vergonha”, “enfiavam a viola no saco” e só teriam de dar graças à Maria, em vez de a querer crucificar na praça pública ao inventarem “segundas intenções” que ela nunca teve, ainda por cima acerca de “uma propriedade” da qual não se colhe rendimento algum. No caso dela, só lhe tem dado responsabilidades, canseiras e despesas, de que todos os outros se demitiram. Talvez as insinuações deles não sejam senão uma forma de querer aliviar o seu sentimento de culpa por nada terem feito pela mãe. É o habitual!
Se uma situação destas se passa em relação à propriedade de uma simples campa, que nunca chegou a ser promovida a jazigo, é caso para nos questionarmos sobre o que se passa por aí quando se trata de heranças e partilhas, e as guerras miseráveis que os herdeiros, antes familiares e depois beligerantes e inimigos figadais fazem entre si, como se de uma batalha se tratasse. E trata. Porque está em causa a disputa pelo melhor e maior bocado, sem respeito pelos direitos dos outros, tal como os chacais e abutres o fazem. Só que estes, são frontais.
Conheço bastantes casos de lutas judiciais e até físicas, por pequenos e grandes legados, que só desprestigiam os seres humanos. Felizes são os animais ditos irracionais, que não esperam nada. Se os pais antes de morrer soubessem os problemas e divisões que a herança iria provocar depois de mortos, especialmente quando se trata dos filhos, muitos deles deixavam-lhes somente uma marreta e um monte de pedras bem duras para partirem aos bocados quando quisessem libertar a sua frustração. Quando sete filhos se juntam, dias depois da mãe ser enterrada, sendo que seis deles nunca a visitaram nos anos que esteve num lar, para saberem “o que sobrou” e descobrem que só “restaram uns brincos”, a forma de resolver quem os apanhava foi à sapatada uns aos outros. Seis mereciam ter “levado no focinho” e os brincos deviam ser entregues à filha que sempre visitou a mãe. Mas a partilha não é feita pelo mérito filial ou sentimental, nem pela maior ou menor dedicação à mãe …
Já fiz avaliações de propriedades para efeitos de partilhas, com mais ou menos bens, e o sentimento que guardo de umas quantas é de que parte dos interessados, apesar de estar a receber riqueza para a qual não contribuiu nada, nunca ficaram satisfeitos com o quinhão que lhes tocou. Mais grave ainda é quando todos os herdeiros concordam que os lotes sejam feitos por avaliador independente, quando depois todos concordam que os lotes estão equilibrados e que a definição do lote que toca a cada um seja feita por sorteio e depois de tirarem à sorte um número que correspondente ao seu lote, quem não aceite o que lhe saiu porque acha que é o mais fraco, que vale menos ou que tem outro defeito qualquer. Porquê? É que, na sua cabeça, permanece sempre a dúvida de que pode estar a ser prejudicado na divisão dos bens, pelo que os bocados que tocaram aos outros vão parecer-lhe sempre que são melhores que o seu. E aí começam as guerras …
Felizes são os animais de estimação pois, à morte do seu dono, não esperam receber nada e só lhes fica a saudade …